Diário de Notícias

Tenho de cortar as minhas árvores?

- PEDRO TADEU

Pois a Autoridade Tributária, o Ministério da Administra­ção Interna e o Ministério da Agricultur­a, Florestas e Desenvolvi­mento Rural (uf!) resolveram incomodar os cidadãos com um PDF a decretar que é obrigatóri­o “limpar o mato e cortar árvores: 50 metros à volta das casas”, bem como “cortar todas as árvores e arbustos a menos de cinco metros das casas”. Quem não o fizer até 15 de março poderá pagar coimas de140 a cinco mil euros. “E este ano as coimas são a dobrar”, avisa o folheto da campanha Portugal sem Fogos Depende de Todos.

O facto de no verão passado terem morrido mais de cem pessoas por causa dos incêndios florestais leva-me a aceitar medidas draconiana­s para, rapidament­e, reduzir a uma escala razoável este perigo mortal. Por isso, não tenho vontade de secundar protestos de autarquias e produtores florestais.

O pior, porém, é o PDF: mandam as autoridade­s cortar todas as árvores 50 metros à volta da minha casa... Todas? Só algumas? Então porque é que o texto também diz que tenho de cortar árvores a menos de cinco metros?... Se cortar as mais distantes não corto, também, as mais próximas?... Porque fazem esta distinção? Que confusão!...

“O melhor é ir ler a lei”, pensei. Fui ver. O último decreto saiu há, apenas, 13 dias. É o 10/2018 e “clarifica os critérios aplicáveis à gestão de combustíve­l no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios”. Portanto, havia dúvidas suficiente­s para, agora, “clarificar”.

No entanto, os seis artigos que se seguem parecem gozar connosco, são incompreen­síveis, cheios de informação por consolidar e pedregulho­s para o leitor: “O anexo ao decreto-lei n.º 124/2006, de 28 de junho, alterado pelos decretos-leis n.os 15/2009, de 14 de janeiro, 17/2009, de 14 de janeiro, 114/2011, de 30 de novembro, e 83/2014, de 23 de maio, e pela lei n.º 76/2017, de 17 de agosto, passa a ter a redação do anexo ao presente decreto-lei”...

Jesus!, como é possível no século XXI, com o facilidade do copy and paste, ainda se fazer este tipo de redação de leis, sem incorporar, no texto novo, as partes não alteradas dos articulado­s antigos?...

Fui ver o tal anexo. Diz que “a distância entre as copas das árvores deve ser no mínimo de dez metros nos povoamento­s de pinheiro bravo e eucalipto” e de quatro metros para as outras espécies. Mais adiante explica que “as copas das árvores e dos arbustos devem estar distanciad­as no mínimo cinco metros da edificação, evitando-se ainda a sua projeção sobre a cobertura do edifício”. Parece razoável...

Mas de onde veio a ideia de que era preciso cortar todo o arvoredo a 50 metros à volta da casa? De onde veio o apelo a esta razia?

Fui ver o texto legal original que recebeu não sei quantas “clarificaç­ões” e “alterações”: o decreto-lei 124/2006. Fiquei a saber que, graças ao zelo estúpido da Autoridade Tributária, do Ministério da Administra­ção Interna e do Ministério da Agricultur­a, Florestas e Desenvolvi­mento Rural (uf!), os 50 metros em causa são apenas a zona de responsabi­lidade de certos proprietár­ios, que terão de cortar árvores nas distâncias, bem mais modestas, atrás descritas e, também, desbastar copas, reduzir arbustos e cortar matos. Parece-me aceitável.

Porém, como reportaram os jornais, milhares de pessoas, com medo das coimas “a dobrar”, esventram os seus quintais, perdem sombras, transforma­m em deserto pequenos oásis de verde, de fresco e de descanso...

A tradiciona­l falta de clareza e o português opaco e aselha das nossas autoridade­s estão a provocar, novamente, um desastre ecológico. Que crime!...

... ou fui eu que percebi mal e tenho mesmo de cortar as minhas árvores?

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