O marketing da morte
No segundo episódio da sétima temporada de Segurança Nacional, o intratável Brett O’Keefe é protegido por uma milícia popular enquanto foge a um mandado de captura do FBI. Dois membros da milícia praticam tiro ao alvo e passam-lhe uma arma para as mãos; O’Keefe acede e imediatamente dá um tombo para trás, ferindo a cara com o coice do disparo. O apresentador clandestino de um programa de extrema-direita que defende a Segunda Emenda e o direito às armas nunca tinha disparado uma. É uma ironia com que a série procura espelhar a irracionalidade dos defensores desta emenda à Constituição dos Estados Unidos, que permite a praticamente qualquer pessoa adquirir armas de forma legal e muitas vezes sem necessidade de registo. É mais fácil comprar uma arma do que tirar a carta de condução. Um jovem de 18 anos consegue adquirir legalmente uma espingarda semiautomática mas não pode comprar um pack de cervejas.
O tiroteio de Parkland, Florida, não foi em essência diferente de tantos outros a que assisti desde que cheguei aos EUA. A sensação de que desta vez haverá consequências deve-se a uma tempestade perfeita que só poderia formar-se com Donald Trump no poder. Primeiro, porque a sua forte ligação à National Rifle Association (NRA), a organização a que se deve esta permissividade na venda de armas, deixou os amantes da Segunda Emenda mais apáticos. Nos oito anos de Obama, as vendas literalmente dis- pararam porque havia um medo irracional de que o governo federal ia tirar as armas a toda a gente. Fincar o pé contra os liberais de esquerda e o presidente Democrata foi um desporto mortífero, que não abrandou sequer após o massacre de 20 crianças numa escola primária, em 2012. Agora, com os Republicanos a controlarem as três alavancas do poder – Casa, Senado e Presidência –, não há nada a temer. É difícil galvanizar as tropas quando já se esmagou o inimigo.
Os Republicanos têm agora a responsabilidade de proteger a população e a sua recusa em aprovar restrições ao acesso a armas perante tragédias sucessivas é encarada como um falhanço. O velho argumento de que a solução para os tiroteios é dar armas a toda a gente, e que a posse de armas torna os ambientes mais seguros, não cai por terra apenas quando se olha para as estatísticas que provam o contrário. É que nem os próprios republicanos acreditam nisso: tanto no congresso republicano como na Casa Branca, na residência secundária de Trump em Mar-a-Lago, no Capitólio e nas sessões abertas dos concelhos republicanos há uma política rígida de proibição de armas de fogo.
Os sobreviventes da escola em Parkland, adolescentes de 16 e 17 anos, conseguiram mais em dez dias do que a esquerda americana em vinte anos. Porque os miúdos não têm motivações ou filiações políticas. Porque vivem numa comunidade abastada. Porque vêm de um estado de maioria republicana, a Florida. Porque apanharam um momento de ebulição social em que a resiliência de normas enraizadas está a ser esburacada pela força da autodenominada resistência. Dezenas de empresas cortaram ligações com a NRA, foi marcada uma marcha nacional antiarmas para 24 de março e alguns sobreviventes estão dispostos a passar o resto da vida dedicados à luta contra esta interpretação da Segunda Emenda.
É que, pasme-se, o direito individual a comprar armas nunca foi uma norma na sociedade americana. Até ao final dos anos 1970 não era uma questão de esquerda ou direita. Não causava grande polémica. O bom senso prevalecia: armas de fogo são feitas para matar, logo, não deviam ser vendidas junto aos lenços de papel e refrigerantes no supermercado.
O texto da Segunda Emenda diz o seguinte: “Uma milícia bem regulamentada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo a manter e portar armas não será infringido.” O consenso até aos anos 1980 era de que isto dava às milícias o direito a terem armas, não aos indivíduos. A gramática duvidosa desta emenda dificulta a sua compreensão, mas no contexto da Constituição a referência é sempre a milícias estatais, não a cidadãos individuais.
Tudo mudou quando um relatório comissionado no primeiro mandato do presidente Ronald Reagan chegou a uma conclusão diferente. Algo do estilo: “Valha-nos o Senhor, andámos 200 anos a perceber mal isto, as vírgulas mudam tudo, afinal, dá-nos direito a ter um arsenal de fogo em casa.” A NRA, que por 100 anos foi uma associação de amantes da caça, mudara a sua postura. De repente, a direita política tinha uma causa unificadora, tal como a esquerda com os direitos reprodutivos das mulheres. O marketing da NRA, os milhões de dólares que voaram para os bolsos dos políticos e a credulidade de cidadãos que aprenderam a odiar o governo federal fizeram o resto do trabalho. A Segunda Emenda tornou-se uma religião, embora apenas um terço dos lares americanos tenham armas. Os outros dois terços ficaram sitiados por esta reinterpretação manipuladora da Constituição. Nunca houve tantos massacres e tiroteios como agora porque esta pândega de armamento é relativamente recente. Mas talvez Parkland seja o ponto de inflexão. Talvez aqueles miúdos não tenham morrido em vão.
Os sobreviventes da escola em Parkland, adolescentes de 16 e 17 anos, conseguiram mais em dez dias do que a esquerda americana em 20 anos