Nuno Garoupa escreve sobre as mudanças políticas na Europa
1 Ao contrário da opinião publicada em Portugal, penso que a reedição da grande coligação na Alemanha é péssima para a União Europeia a médio prazo (consequentemente, também não será boa para Portugal, apesar de todas as hosanas locais). Tive oportunidade de explicar isso há umas semanas. Quatro razões – a destruição do SPD como partido central do sistema partidário alemão e da Europa (agora nas sondagens com apenas 15% a 18%), um provável sorpasso pelo AfD e pelo próprio Linke (respetivamente, com 14% a 16% e 9% a 11% nas sondagens, estando osVerdes com 12% a 13%), um enorme eleitorado contrário ao atual projeto europeu ignorado pelo establishment politicamente correto (nas eleições de 2017, somou 31% à direita mais os 9% do Linke à esquerda), a possibilidade de um cenário austríaco a médio prazo (com uma democracia-cristã muito enfraquecida dando lugar a um governo dominado por populismo antieuropeu com semelhanças à direita húngara, polaca e checa). Mais tarde, numa lógica semelhante, Marques de Almeida, no Observador, acrescentou a possível queda de Angela Merkel como outra consequência inevitável do atual cenário.
Neste momento, tudo depende do referendo interno do SPD, em que 460 mil militantes estão chamados a pronunciar-se. Se a grande coligação for aprovada, nasce enfraquecida, com um SPD a desfazer-se (há alguma probabilidade de os apoiantes do “não” acabarem numa lista eleitoral conjunta com o Linke nas próximas eleições) e sem liderança (Schulz disse uma coisa e o seu contrário, sendo forçado a demitir-se, porque a sociedade civil alemã não é tão simpática com a classe política como a portuguesa), enquanto a própria CDU enfrenta a sua maior crise interna desde a eleição de Merkel para a sua liderança em 2005. Uma coligação de partidos em crise dificilmente chegará muito longe em termos de políticas internas (por mais que haja generoso gasto público) ou de agenda europeia. Se a grande coligação não for aprovada no referendo interno do SPD, Merkel dificilmente poderá agora apostar num governo minoritário. Assim sendo, abre-se um cenário de eleições a meio do ano, com resultados previsivelmente não muito distintos dos do ano passado. Apenas uma mudança de liderança na CDU pode abrir um novo ciclo, que inevitavelmente convoca um realinhamento do sistema partidário (que passou de três partidos nos anos 1970 para seis partidos agora – por contraposição com a realidade portuguesa, quase imutável há 40 anos).
2 Complexa é também a situação em Itália. Tudo indica que não haverá um vencedor claro nas eleições de 4 de março, com a governabilidade totalmente dependente de negociações partidariamente muito difíceis. O estranho Movimento Cinco Estrelas continua a liderar as sondagens (enquanto partido) com 26 a 28%, ligeiramente acima do resultado de 2013, mas sem grande capacidade para mobilizar uma maioria parlamentar. E as experiências de governação nas grandes cidades conquistadas nas eleições locais de 2016 (Roma e Turim) têm revelado os problemas internos. Os Democratas têm estado em queda, Renzi dificilmente passa dos 20% nas sondagens e, integrado na coligação com outras forças de centro-esquerda, não parece conseguir chegar aos 30% como em 2013. Já Berlusconi, inesperadamente renascido das cinzas, lidera a coligação de direita, que se encontra claramente acima dos 30% nas sondagens, tudo indicando um resultado melhor do que nas últimas eleições. O atual primeiro-ministro, Paolo Gentiloni, anunciou recentemente que pretende uma coligação estável de esquerda, somando Renzi e o Movimento Cinco Estrelas, algo que se afigura quase impossível. Em contrapartida, a possibilidade de Berlusconi tentar algum entendimento com Renzi não é implausível e tem algum precedente (o governo Letta, em 2013, resultou precisamente de um acordo semelhante, mas durou apenas uns meses).
Podemos, pois, perceber que a Itália vai entrar num período de instabilidade governativa no momento em que a Alemanha vive uma transição política. Desde o aparecimento do Movimento Cinco Estrelas, em 2013, com 26%, a bipolarização direita/esquerda, que caracterizou a Itália desde 1996, tem sido incapaz de evoluir para um novo arranjo partidário estável.
3 E temos a França. Dos três grandes europeus (uma vez que o Reino Unido está de saída), é o único com estabilidade governativa. Macron soma e segue. Inclusivamente, reconhece publicamente as suas insuficiências reformistas (um exemplo de humildade sem reflexo na direita portuguesa). Tudo indica que pretende criar um novo partido europeu fora do PPE (o qual provavelmente perderá bastantes lugares nas eleições europeias de 2019, devido à crise do LR e da CDU na Alemanha). O aparecimento de um terceiro partido forte na Europa (resultante da aliança de Macron com o Ciudadanos espanhol, também primeira força nas últimas sondagens, e com outros partidos centristas europeus, inclusivamente o novo Kinima Allagis na Grécia) mudará substantivamente a dinâmica da União, dominada pelo cartel PSE/PPE há quase 30 anos. Se a isso somarmos a “nova” direita do Centro e do Leste Europeu, mesmo que excluída para já de qualquer papel ativo nas instituições europeias, afigura-se um novo sistema partidário europeu a quatro.
A possível transformação do binómio burocratizado PSE/PPE num sistema de quatro partidos inevitavelmente terá repercussão em Portugal, mas não pela via partidária (onde curiosamente temos dois partidos no PPE, PSD e CDS, mas nenhum no futuro grupo de Macron), mas pelo inevitável reajustamento das instituições europeias. Porém, mantendo a tradição das últimas décadas, tudo isto parece muito distante à classe política nacional. Até que lhes bata à porta. Para já, fiquemos naquelas vacuidades habituais tipo Merkel e Schulz, os amigos de Portugal.
A Itália vai entrar num período de instabilidade governativa no momento em que a Alemanha vive uma transição política