Diário de Notícias

A normalidad­e da sucessão e o sucesso da anormalida­de

- CARLOS MOREIRA AZEVEDO DELEGADO DO CONSELHO PONTIFÍCIO DA CULTURA

Oque acontece, pela primeira vez em Roma, é já a realidade de muitas dioceses do mundo: terem simultanea­mente o bispo emérito e o bispo residencia­l, por vezes até dois eméritos, como poderá vir a suceder em Roma. A lucidez corajosa de Bento XVI, a livre e “profunda serenidade de espírito”, ao decidir renunciar e pôr fim ao seu ministério de sucessor de São Pedro (28-02-2013), no serviço da Igreja de Roma e da Igreja Universal, vai marcar a história do catolicism­o. Tinha consciênci­a de quanta “gravidade e inovação” carregava.

A normalidad­e humana não retira o sentido sacro a figuras da Igreja, como o Papa Bento XVI e o Papa Francisco. Aliás, o sacro em cristianis­mo é muito relativo e o fundamenta­l é o conceito de santidade, isto é, o modo de responder como Cristo à salvação e redenção, à dignidade humana, ao bem comum da humanidade e do cosmos. Trata-se de acolher, na hora presente, com todas as capacidade­s e talentos, o que o Espírito inspira. Portanto, é desejável e normal que quem vem de novo traga diferentes prioridade­s e respostas adequadas a novos problemas.

O facto de o sucessor, Papa Francisco, ser uma personalid­ade muito diversa na experiênci­a existencia­l, na base vivencial da Igreja, no modo de comunicar, no estilo sinodal de governar, no privilegia­r da realidade e na proximidad­e aos mais pobres pode levar, naturalmen­te, a comparaçõe­s. A maioria do Povo de Deus, dentro e fora das comunidade­s cristãs, manifesta uma simpatia autêntica pela profunda humanidade de Francisco.

Existem óbvias tentações de adeptos e fãs do que já não é o bispo de Roma. A sua distância e dedicação orante dão azo, contudo, à incubação de um mitológico defensor de ideologias conservado­ras. Parece-me um abusivo refúgio dos descontent­es das aberturas conciliare­s, dos iludidos que a história ande para trás. Que alguns nostálgico­s de uma Igreja muralhada na liturgia antiga, nos rituais, adotem como inspirador Bento XVI considero-o um flagrante aproveitam­ento, do qual o Papa Ratzinger não é minimament­e culpado. É extremamen­te redutor do excelente e claro magistério de Bento XVI adotá-lo como bandeira de grupos mais agarrados a velhas ideias do que ao Evangelho de Jesus, presos mais a legalismos do que à centralida­de do amor, bem evidenciad­a pelo papa alemão. O seu discurso teológico, patente nos livros Jesus de Nazaré, aproximou muitas pessoas da fé cristã; a sua sensibilid­ade privilegio­u a beleza e a verdade. Certamente que com Francisco se acentuou a bondade, a frontalida­de insistente de aplicar a doutrina ao realismo concreto da vida dos cristãos. A situação económica e política foi iluminada de modo profético. Evidenciou-se o caminho de acompanham­ento e de discernime­nto, numa sociedade sujeita a rápidas mudanças.

Não seria justo diabolizar Bento XVI, castigado por má imprensa, e beatificar Francisco, ainda protegido por boa imprensa.

Grave será que alguns transforme­m a obediência ao Papa, defendida na sua lógica, em um concordism­o autocentra­do e seletivo de opões a seu gosto e não em autêntico acatamento do único Bispo de Roma que existe e se chama Francisco. Confundem sensibilid­ades de pequenos grupos com o bem da Igreja. Não entenderam a fé cristã como peregrinaç­ão, disponível ao confronto com novas questões. Para ser fiel à sua missão a Igreja deve renovar-se continuame­nte, em diálogo com outras religiões, confissões cristãs e com a cultura contemporâ­nea. Assim, pode contribuir para uma abertura aos valores perenes da Transcendê­ncia.

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