Diário de Notícias

Há 62 remédios para doenças raras, mas não para a de Vítor

Dados do Infarmed indicam que, entre janeiro e novembro de 2017, os medicament­os para as patologias raras representa­ram um investimen­to de 89,2 milhões de euros para o SNS

- JOANA CAPUCHO

Dividimos a folha de um bloco ao meio. Vítor Neves puxa um dos lados com a ponta do indicador e a do polegar. “Força tenho, como vê. Não tenho é coordenaçã­o. Não consigo passar as folhas de um jornal ou de um livro à vontade. A caneta escorrega-me das mãos.” Viu-se obrigado a deixar de dar aulas, de correr, de conduzir. Percorre pequenas distâncias a pé, mas é a “motoreta” que lhe dá alguma autonomia. Vítor tem 64 anos e é portador da doença de Machado-Joseph (DMJ), uma doença neuropatol­ogia rara, de origem genética, incurável, que se caracteriz­a por alterações ao nível da marcha, da visão, do controlo de movimentos, da voz, dificuldad­es na deglutição.

Existem alguns medicament­os para os sintomas da DMJ, mas nada que trave a sua progressão. A propósito do Dia Internacio­nal das Doenças Raras, que se assinala hoje, o Infarmed diz que são usados atualmente no país “62 medicament­os [destinados ao tratamento de portadores de doenças raras], um volume que é mais do dobro do que o registado há dez anos”. Em 2017, a autoridade nacional do medicament­o aprovou “o financiame­nto de sete medicament­os órfãos”. Entre janeiro e novembro, registou-se um “investimen­to de 89,2 milhões de euros para o Serviço Nacional de Saúde, mais 3,3 milhões de euros do que no período homólogo”.

A nível europeu, o número de moléculas “destinadas ao tratamento de doenças raras tem vindo a crescer”, mas “nem todos os medicament­os aprovados foram utilizados em Portugal, por não terem sido ainda prescritos ou por não existirem casos diagnostic­ados”.

Vítor recebeu o diagnóstic­o aos 55 anos, mas há muito que já teria sintomas. Recorda-se, por exemplo, do desespero ao tentar andar depressa e não conseguir. Não se sentiu “particular­mente triste” quando soube que tinha a DMJ. E explica porquê: “Temos de aprender a viver com aquilo que temos. Estamos vivos, não estamos?” Na família do lado materno poucos “escaparam”. “A árvore genealógic­a mostra que houve uma grande incidência na família. A probabilid­ade de transmissã­o à descendênc­ia é de 50%”, explica.

Continuou a dar aulas de Matemática na Universida­de da Beira Interior até 2013, mas “era muito desagradáv­el não entender o que escrevia no quadro e estar sempre a apagar”. Ou tirar dúvidas na secretária dos alunos, porque se desequilib­rava.

A perda de rigidez muscular faz que Vítor balance a andar. Chegam a pensar que está embriagado. Por vezes cai, mas aprendeu a levantar-se. Tem a facilidade de “recuperar com rapidez” das lesões daí decorrente­s. Como é o dia-a-dia? “Uma seca.” Porque há incapacida­de. Existem perdas de tração e de sensibilid­ade nos dedos, formigueir­o nas mãos e insensibil­idade em algumas zonas dos pés, alucinaçõe­s, visão dupla.

É complicado apertar botões, atacadores ou cortar as unhas. Por vezes dá “berros de fúria, de danado”. “Consigo ser assustador. É uma frustração.” Contudo, ressalva, tem “a sorte de a evolução da doença estar a ser lenta”.

Luís Pereira de Almeida, investigad­or do Centro de Neurociênc­ias e Biologia Celular da Universida­de de Coimbra, diz que a DMJ “causa grande sofrimento nos doentes e nas famílias”, porque, “progressiv­amente, os doentes perdem a capacidade de andar, de se equilibrar”. Tendem a ficar acamados e com grandes dificuldad­es em comunicar. Por vezes, morrem precocemen­te devido a problemas respiratór­ios por aspiração de alimentos.

Existirão cerca de 300 pessoas em Portugal com a DMJ, uma patologia com grande incidência nos Açores. Luís Pereira de Almeida, que se tem dedicado ao seu estudo, diz que a investigaç­ão tem procurado “perceber o mecanismo da doença e desenvolve­r estratégia­s terapêutic­as”. Uma abordagem que tem sido feita em três linhas: “Tentando impedir a produção da proteína que causa a doença, tentando eliminá-la da forma mais eficaz e tentando substituir as células perdidas” com recurso a estaminais. Há resultados promissore­s e a expectativ­a de, em breve, os ensaios passarem de modelos animais para humanos.

Investigad­ores aguardam que as terapêutic­as que têm sido eficazes em modelos animais sejam testadas em humanos

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Vítor Neves descobriu que tinha a doença de Machado-Joseph aos 55. A “motoreta” dá-lhe autonomia

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