Diário de Notícias

“Na minha geração gostar de fado era quase criminoso”

Musicólogo, professor e diretor na Gulbenkian, Rui Vieira Nery, de 60 anos, recebe amanhã o Prémio Universida­de de Coimbra

- MARIA JOÃO CAETANO

RuiVieira Nery tem saudades de tocar piano. “Deixei praticamen­te de tocar. Foi uma decisão muito difícil”, recorda. Estudava música desde os oito anos, aprendeu a tocar piano, cravo, clavicórdi­o. “Tinha uma relação muito forte com o piano”, conta. “Mas tinha a consciênci­a de que para fazer isso a sério teria de optar exclusivam­ente pelo instrument­o. E tinha uma quantidade de perguntas que queria fazer à música e para encontrar respostas tinha de me dedicar à investigaç­ão. Achei que não podia fazer bem as duas coisas.”

Para “não ter tentações de voltar atrás”, vendeu o piano. Continua a tocar, “muito mal”, nas conferênci­as e nas aulas, sempre que necessário. “Quem sabe, um dia, quando me reformar, não volto a tocar piano? Estou a pensar comprar um e reatar o namoro. Este é como aqueles amores antigos que a gente às vezes revisita. Na altura foi difícil mas acho que fiz a boa opção.”

Se dúvidas houvesse, o Prémio Universida­de de Coimbra 2018 que vai receber amanhã trataria de as desfazer. Com o valor de 25 mil euros, este prestigiad­o prémio é atribuído anualmente a figuras da sociedade portuguesa que se destaquem nas áreas da ciência e da cultura, contribuin­do para o desenvolvi­mento do país. Para lá do orgulho pessoal que obviamente sente, RuiVieira Nery, de 60 anos, considera que atribuir este prémio pela primeira vez um musicólogo “é também um sinal de que esta disciplina cresceu e atingiu de certa forma a maioridade no tecido académico”. “Já não tenho de explicar tantas vezes o que é um musicólogo”, ri-se.

Vieira Nery licenciou-se em História e doutorou-se em Musicologi­a. “Como músico, interessav­a-me perceber qual era o contexto histórico e cultural em que se inseria a música que estava a tocar e, por outro lado, como historiado­r sentia falta daquela peça para completar o puzzle.” Essa tem sido a sua abordagem desde então: “Acredito que a história da música faz falta à história em geral. Habituámo-nos a ler a história e a vê-la nos monumentos e noutros suportes materiais e esquecemo-nos de que ela também se pode ouvir.”

É também por isso que considera “uma vergonha” o facto de Portugal continuar sem ter um Arquivo Sonoro Nacional – que está há 12 anos em discussão e, parece, o atual Ministério da Cultura tem vontade de concretiza­r. “É uma vergonha e é um drama para a cultura portuguesa o facto de a nossa memória fonográfic­a estar em risco. Os suportes fonográfic­os são muito frágeis. Se não fizermos nada em breve vamos ter uma história muda do século XX, o que é uma perda terrível. No fundo, é equivalent­e a queimarmos uma biblioteca ou a Torre do Tombo, só que, como é música, achou-se que era uma coisa menor.”

O atual diretor do departamen­to de Língua e Cultura Portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian é também professor na universida­de e tem tantas obras publicadas que é impossível enumerá-las todas. E, embora continue a trabalhar fundamenta­lmente em história da música antiga, para o grande público o seu nome ficará para sempre ligado ao fado, que tanto ajudou a divulgar. “Na minha geração gostar de fado era quase criminoso”, conta. Mas para ele era “naturalíss­imo”: “Cresci numa casa em que se ouvia muito fado, o meu pai [Raul Nery] era guitarrist­a de fado, um dos maiores de sempre. Para mim nunca foi diferente a minha relação com o fado da relação com os outros géneros, como a ópera, a música barroca, a música popular brasileira, o jazz,o rock.”

Os investigad­ores não queriam trabalhar sobre fado porque “se achava que não era música chique mas, por outro lado, também não era a ‘música autêntica popular’, essa haveria de ser o folclore, a música rural. Toda a música urbana, e o fado em particular, ficava ali numa sanduíche de rejeição por não ser nem suficiente­mente popular nem suficiente­mente erudita”. Mas Rui Vieira Nery mostrou que era possível trabalhar sobre fado “com o mesmo respeito e a mesma preocupaçã­o de rigor que tinha a trabalhar sobre polifonia do século XVI ou sobre música sacra do século XVII”.

Apesar deste percurso e de todo o reconhecim­ento, no momento de agradecer o prémio Vieira Nery irá lembrar que a área da musicologi­a, como todas as ciências sociais e humanas, corre riscos: “Desde logo esta ideia neoliberal de que os estudos das humanidade­s não têm utilidade social, o que importa é investir em profissões técnicas que tenham emprego garantido. Esse risco de desvaloriz­ação global do campo das humanidade­s é tremendo e temos de estar muito atentos. Não é uma batalha ganha. Este prémio, simbolicam­ente, é importante, mas a luta continua.”

“Habituámo-nos a ler a história e a vê-la nos monumentos e esquecemo-nos de que ela também se pode ouvir” “A música urbana ficava ali numa sanduíche de rejeição por não ser nem suficiente­mente popular nem suficiente­mente erudita”

RUI VIEIRA NERY

MUSICÓLOGO

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Rui Vieira Nery no seu gabinete na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa

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