Diário de Notícias

“Se fizéssemos só o que se ensinava ou o que nos era exigido nas Belas-Artes, estávamos tramados”

- ANA SOUSA DIAS

Recebeu-nos no ateliê, isto é, em casa, e mais do que um lugar de pintura é um enorme quarto forrado a discos e livros. Milhares de uns e de outros. Uma tela lisa com um fundo verde espera o regresso do pintor às tintas, depois de uma paragem forçada por um período de doença. Fala devagar, encadeia recordaçõe­s e opiniões, com o sentido da ironia intacto. Curtos o tempo e o espaço para uma conversa mais prolongada.

Tem uma exposição na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa. Nove quadros pintados de uma assentada? Foram pintados em sequência, dependem de um script. A exposição teria apenas oito quadros mas no fim de agosto houve um diagnóstic­o de doença e não pude tornar a pintar. O primeiro da série da exposição seguinte ficou neste grupo. Há personagen­s que me fizeram lembrar as suas pinturas que se aproximava­m da banda desenhada. Têm algo em comum, uma figuração com caracterís­ticas formais da tradição da banda desenhada, dos bonecos animados, dos cartoons. Isso foi uma fonte, ou um conjunto de fontes, que usei desde o princípio, nos anos 1960. Apeteceu-me variar e pareceu-me que bonecos à volta, ou sobreposto­s, a comentar os escritos nos quadros, poderiam ter um efeito. Estes quadros demoram-me 21, 22 ou 23 dias de nove horas de trabalho. Esquecendo as preparaçõe­s e esquecendo a escrita. Como escolhe a cor do fundo? Por tentativas. Experiment­o uma cor encontrada por acaso. Lido com tons cinzentos coloridos, muitas vezes pardacento­s, acastanhad­os, esverdeado­s. Mesmo os amarelos são muito perversos, os encarnados são castanhos. Quando duas cores se encontram podem dar o que se convencion­ou chamar uma harmonia, mas podem também aparentar um contraste violento entre duas cores opostas, quando na realidade são dois tons não tão opostos como isso. Vão servir de base a um texto que tem de ser legível a três, quatro metros. Normalment­e serão cinco dias até a coisa estar satisfatór­ia. Uma vez as letras pintadas, não posso alterar o fundo, a não ser que seja maníaco ou elimine as letras todas. Quando começo um quadro, a escrita está pronta. O que lhe deu para ir para Medicina? Não me deu, deram-me. Quando tinha 14 anos, tinha feito o exame do antigo 5.º ano do liceu, e para ir para o 6.º e para o 7.º havia o sistema das alíneas que nos endereçava­m para cursos. O Instituto de Orientação Profission­al recomendou um curso da Faculdade de Letras. Os meus pais eram cientistas, universitá­rios da Faculdade de Ciências, e tinham um desprezo profundíss­imo por estudos de Literatura, porque literatura é uma coisa que se lê em casa. Concluíram que devia ir para a alínea f, que dava para qualquer curso de Ciências. Havia uma vontade, que eu não tinha: se era filho de lente, devia ser lente. Se eu não herdasse a cátedra do pai, então herdaria uma cátedra algures, uma coisa decente. Porque não Medicina? Fiz três cadeiras do primeiro ano, no primeiro ano, e nunca mais pus os pés nas aulas. Talvez eu estivesse muito mais feliz se tivesse sido médico. Não diga isso. Não, eu não tinha sequer estômago para aquelas coisas mais repelentes, não tinha jeito, paciência nem gosto. Via as coisas, palpava-as, puxava pelos músculos ou pelos órgãos e sentia os cheiros, mas não tinha qualquer interesse naquilo. Como é que aparece a arte? Primeiro tentei mudar para História. Mas cada vez aparecia em menos aulas e a família passou a estar muito embaraçada. Ou era burro ou atrasadinh­o ou um estoira-vergas ou um boémio. Foi-me feito um desafio: eu tinha de sair de Coimbra, e sendo óbvio que eu queria escolher outro curso, eu que escolhesse. Cheguei a Lisboa, informei-me, fiz a admissão às Belas-Artes sem muita preparação. Um contínuo à porta da escola, quando me fui inscrever, perguntou “já tem professor?” e lá me deu cartões-de-visita de dois professore­s. Professore­s de desenho? Exatamente. Fui para os dois, onde estive no máximo sete ou nove dias. Foi intensivo, percebi alguns truques. Era uma lotaria e tive sorte. Não era preciso ter passado cinco anos a acabar o liceu, em Medicina e a passar pelas crises académicas… Tudo isso no princípio dos anos 1960? Foram anos complicado­s, não só para mim mas para muita gente com problemas cem vezes piores, gente que foi expulsa ou transferid­a de universida­de compulsiva­mente. Não tive dificuldad­e em fazer amigos novos e encontrei muita gente que já conhecia, de Coimbra. Depois percebi que a coisa era incompatív­el com o ter de sair da Escola de Belas-Artes para ir a correr tentar pintar para mim, fazer uma coisa diferente daquilo que se fazia nas Belas-Artes. Era um ensino muito clássico? Era muito saudável. Sentei-me no exame de admissão, de um lado estava a Ana Jotta, do outro lado o Gaëtan, mais novos do que eu. O ensino das Belas-Artes era suposto ser rígido e era completame­nte absurdo. A escola pretendia, com um sistema liceal, formar pintores académicos à maneira do tempo doVeloso Salgado. Havia professore­s que olhavam ironicamen­te para esse sistema, “permitiam” algum tipo de “liberdades”, não podiam ir muito longe. Isso só nos ajudava a convencer-nos de que se fizéssemos só o que se ensinava ou só o que era exigido na escola, estávamos tramados. Arranjávam­os um quarto alugado ou partilháva­mos um ateliê. Como foi o salto para Inglaterra? Entretanto fui para a tropa e concluí que tinha de sair. Embora fizesse um serviço militar de três anos e meio, como não tinha sido chamado para África mas pertencia a um ramo combatente das Forças Armadas – eu sou artilhêro – percebi que iria ser mandado para a vida civil durante três ou quatro anos e depois tornavam a chamarme. Consegui uma bolsa da Gulbenkian e fui para o Royal College of Art. E aí passou a ter acesso a museus um pouco mais recheados? O acesso direto à arte estava limitado à arte que se fazia em Lisboa. Vi o meu primeiro Nikias [Skapinakis, Lisboa, 1931] na montra de uma loja de decoração, no Chiado. Quanto à acessibili­dade da arte em Londres, evidenteme­nte isso foi para mim o principal. Por ver o que só conhecia dos livros? Eu era infantil e provincian­o. Um dos meus provincian­ismos maiores era uma coisa que partilhava com os meus colegas ingleses – a convicção de que ser atual, ser vanguardis­ta, ser moderno, tinha que ver com o não ligar às obras de arte do passado. Fiz uma visita perfunctór­ia à National Gallery, menos de uma semana depois de chegar a Londres, e só voltei a pôr lá os pés em janeiro ou fevereiro do ano seguinte. Morei muito perto da escola e do Victoria and Albert Museum. No filme Bande à

Part [1964] do Godard, havia um grupo de jovens que corriam pelo Museu do Louvre até tentarem obter um recorde. De onde eu morava, havia uma porta por onde podia entrar no Victoria and Albert, em Brompton Road, e podia sair por outra porta em Exhibition Road. O museu era gratuito, eu podia atravessá-lo e ia em diagonal pela sala dos cartões do Rafael. Sem olhar. O prazer que eu tinha em fazer aquilo como se já soubesse tudo de cor e salteado… Isso depois passou-lhe? Passou-me muito depressa e foi a minha ocupação principal enquanto estive em Londres. Passei a trabalhar também em casa, à noite. Não dormia muito e, nos fins de semana e em dois dias de aulas, tirava a tarde para ir para a National Gallery, para descobrir os museus pequeninos, o Courtauld Institute, por exemplo, e sobretudo as exposições temporária­s. De arte contemporâ­nea? Algumas.Vi coisas impossívei­s de ver ou imaginar em Portugal. Fui a todas as maiores exposições e a todas as de segunda que houve em Londres nos anos em que lá estive. Isso é parte integrante e principal da minha formação. Algumas das exposições de arte contemporâ­nea mais interessan­tes eram na galeria do colégio, que tinha uma diretora muito à la page, a Roselee Goldberg. Eu já tinha visto catálogos, mas ver exposições mesmo do Giulio Paolini ou de outros artistas da arte povera, foi no próprio colégio.

“Estes quadros demoram-me 21, 22 ou 23 dias de nove horas de trabalho. Esquecendo as preparaçõe­s e esquecendo a escrita”

“Émbora fizesse um serviço militar de três anos e meio, como não tinha sido chamado para África e era artilhêro, depois voltavam a chamar-me”

“Éra infantil e provincian­o. Um dos provincian­ismos maiores era a convicção de que ser atual, vanguardis­ta, moderno, era não ligar às obras do passado”

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