Diário de Notícias

“Incêndios mostram que o Estado não aprendeu a lição com Entre-os-Rios”

Faz amanhã 17 anos que a queda da Ponte Hintze Ribeiro arrastou 59 pessoas para a morte. Familiares ainda sofrem

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DESASTRES Já passaram 17 anos. A 4 de março de 2001, dez minutos depois das 21.00, um pilar da Ponte Hintze Ribeiro cedeu e a queda do tabuleiro arrastou um autocarro e três automóveis para o rio Douro. Morreram 59 pessoas, mas apenas 23 funerais foram realizados. Uma catástrofe que deixou marcas profundas em Castelo de Paiva, onde residia a maioria das vítimas, e no país. Dezasseis anos depois, Portugal viveu novamente grandes desastres com os incêndios e entre os familiares das vítimas da queda da ponte há quem veja um paralelo na forma como o Estado lida com estas situações. “Tem muitas semelhança­s. São ambas situações anormais em que o Estado tem sido negligente. Depois assume a culpa mas não a responsabi­lidade”, disse ao DN Augusto Moreira, presidente da direção da Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios.

Em ambos os desastres, com 16 anos de intervalo, “só depois do acontecime­nto é que há uma reação”. Com a salvaguard­a do Estado como primeiro objetivo. “Após a queda da ponte, tudo se exigiu, com inspeções a pontes e uma série de medidas. Agora vemos o mesmo. Após os dois grandes incêndios, o Estado que foi negligente já está a transferir a responsabi­lidade para a limpeza dos terrenos.”

Augusto Moreira diz que até nas indemnizaç­ões – os familiares receberam 50 mil euros cada em 2001 através de um mecanismo rápido – se segue o mesmo rumo. “É interessan­te ver o Estado anunciar as indemnizaç­ões às vítimas de forma Augusto Moreira preside a associação dos familiares das vítimas da queda da ponte rápida, com a comunicaçã­o social a difundir esta mensagem e quem não for a tempo fica de fora.” Por isso, compreende que haja quem fique revoltado com um processo que abre e fecha de forma rápida. “Faz lembrar o nosso processo – o importante é indemnizar rápido para que não façam barulho.”

Outra questão levantada pelo habitante de Castelo de Paiva que perdeu a mãe no desastre é o país ter vivido uma grande tragédia em 2001 e não ter apreendido nada. “Isto surpreende. Há modelos, como em França, em que existe uma estratégia nacional, com procurador­es do Ministério Público, psicólogos e associaçõe­s de vítimas como a nossa. Da experiênci­a para se saber como intervir em situações de catástrofe. Não há uma estratégia nacional”, sintetiza. A este propósito, Augusto Moreira aponta os trabalhos de investigaç­ão realizados depois de 2001. “Após a queda da ponte houve muita procura de psicólogos, sociólogos e outros para falar connosco. Até me perguntava: para quê tantas entrevista­s? Pois deram trabalhos muito importante­s que deviam ter continuida­de prática, mas não têm.”

Refere-se à tese de doutoramen­to de Pedro Araújo, sociólogo e investigad­or no Centro de Estudos Sociais da Universida­de Coimbra, “Um Estado longe de mais. Para uma sociologia com desastres” (premiada como a melhor da Faculdade de Economia da Universida­de de Coimbra no ano letivo 2013-14), e a outras na área da psicologia. Pedro Araújo, que tem dedicado atenção aos desastres, concluiu na sua investigaç­ão que “a queda parcial da Ponte Hintze Ribeiro tem vindo progressiv­amente a converter-se num mero acontecime­nto local e a perder muito do desassosse­go de que inicialmen­te se revestiu e a ser agrilhoada, definitiva­mente, pelo que de inevitável e fatal reside no recurso mediático e popular à palavra ‘tragédia’”.

Neste ano, a associação assinala a efeméride de forma mais discreta, depois da presença do Presidente da República no ano passado. Haverá uma missa e uma cerimónia simbólica junto ao monumento. “Pensei fazer o mesmo que faziam os nossos familiares – ir à missa e dar um passeio –, mas muitos ainda não estão preparados. A minha intenção mantém-se, veremos no futuro se podemos fazêlo”, diz Augusto Moreira. D.M.

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