MUS-E ou como a música pode ajudar a esbater as diferenças
Há 20 anos Yehudi Menuhin visitou, em Algés, a primeira escola do país com o MUS-E, projeto que criou para contextos vulneráveis e multiculturais, e que hoje continua.
Projeto do violinista Yehudi Menuhin começou há 20 anos e continua a fazer a ponte entre diferentes culturas.
Os miúdos não conseguiam dizer o seu nome, então chamavam-lhe “senhor Amendoim”. Yehudi Menuhin (1916-1999), um dos maiores violinistas do século XX, visitou a Escola Básica N.º 1 de Algés em 1998 e chamou-lhe “l’école de mes rêves”. Foi nessa escola dos seus sonhos que o projeto MUS-E começou em Portugal. Imaginado por Menuhin para levar as artes a escolas de bairros desfavorecidos, muitas vezes com situações problemáticas, e de contextos multiculturais, o MUS-E, que começou em 1994 na Suíça, existe em 12 países europeus, da Bélgica à Hungria ou à Espanha, e em Israel.
A professora de Música Cristina Brito da Cruz foi contactada pelo próprio violinista e maestro para, com a jornalista Maria Helena Vaz da Silva, lançar o MUS-E no país. E foi naquela escola, frequentada por muitos jovens do bairro – hoje extinto – da Pedreira dos Húngaros, com uma comunidade forte de cabo-verdianos e descendentes, que começou. Depois haveria de passar por diferentes escolas, de Évora a Leiria ou ao Porto. Hoje está em Oeiras, Évora e Lisboa.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Menuhin, americano, deu mais de 500 concertos para as tropas aliadas em hospitais ou bases militares e, no final da guerra, tocou com Benjamin Britten para sobreviventes dos campos de concentração nazis. Fê-lo igualmente em 1995, na África do Sul, para celebrar a libertação de Nelson Mandela, ou, no ano seguinte, na Bósnia, no Concerto da Paz em Sarajevo.
É preciso atravessar todo o bairro dos Navegadores, em Porto Salvo, Oeiras, para chegar à Escola Básica Pedro Álvares Cabral. Uma última descida e a escola aparece. Quando passamos o portão, os miúdos correm para Pedro Saragoça Martins, coordenador do MUS-E em Portugal, vindos de todas as direções. Não querem nada de especial, senão dizer “olá” e contar isto ou aquilo dos seus dias.
Claire Honigsbaum prepara a sala para receber os alunos do 1.º ano na sessão de Expressão Musical. Quando entram, não há qualquer estranheza: a britânica e as crianças conhecem-se desde o jardim-de-infância, tratam-se pelo nome e por tu. “A primeira vez que ouvi a música da Claire gostei, fica no ouvido”, conta Patrícia, uma das crianças que se sentam em roda, ora cantando ora usando alguns instrumentos, trabalhando o ouvido, a coordenação ou a memória.
“Acho que é fundamental para o ser humano exprimir a sua criatividade, desenvolver a sua capacidade artística, seja qual for o seu âmbito social. Eu cresci num bairro multicultural em Londres, Nothing Hill Gate – que agora é muito famoso, muito rico – e sempre tive um interesse pelo encontro com culturas. Havia o Carnaval, a música reggae, a comunidade portuguesa, a espanhola, uma grande mistura”, explica a animadora do MUS-E. Não o faz por acaso, mas para falar das sessões em que também os pais das crianças são convidados a participar e a partilhar “diferentes formas de cantar, dançar, tocar”, seja funaná ou música cigana. Pedro acrescenta que também nas sessões de escrita criativa os pais são convidados a ir à escola contar histórias tradicionais das suas culturas.
“Com estes miúdos a crescer assim, miúdos africanos a dar-se muito bem com miúdos ciganos e miúdos portugueses não ciganos, quando forem adultos tudo indica que não vai haver aqueles conflitos que existem entre alguns adultos”, continua o coordenador.
O MUS-E chegou à escola poucos anos depois de esta abrir, em 2001, no bairro construído para alojar as populações de bairros dispersos do concelho, entre eles a Pedreira dos Húngaros. “Como viu o bairro está completamente isolado da vida de Porto Salvo, como de Leião, e a escola está no fundo do bairro. É um bairro que tem um estigma, mas não é hostil”, continua. Claire anui com a cabeça: “O mundo das crianças é este bairro. É um mundo muito fechado. Um dia fiquei muito surpreendida, porque levei para o jardim infantil uma canção sobre uma roseira, comecei a falar de rosas e depois a educadora virou-se para mim e disse: ‘Claire, as crianças não sabem o que é uma rosa.’”
“Eu sou a Fátima e gosto desta aula porque o professor Efthimios faz jogos connosco e movimentos divertidos.” “Saímos daqui felizes. Estamos sempre sentados na sala”, diz o Duarte. Durante a sessão de Movimento e Dança, Efthimios Angelakis, grego há muito em Portugal, põe música, ora dá-lhes instruções precisas ora diz-lhes para imaginarem que o seu corpo é capaz de pintar o espaço, e que o devem usar para isso. A certa altura diz-lhes para fecharem os olhos e continuarem a dançar. Eles acalmam. Sandro, de olhos fechados, parece já não estar naquela sala, e todo corpo é levado pelo embalo primeiro dos braços, depois da cabeça.
Efthimios tem uma ligação forte ao bairro. “Já apanhei vários irmãos e já cheguei a apanhar filhos de antigos alunos”, conta o animador que há 15 anos trabalha neste projeto da Fundação Internacional Yehudi Menuhin, distinguida em 2011 com o Prémio Internacional Calouste Gulbenkian. “São crianças que muitas vezes têm pouca capacidade de concentração e estas atividades ajudam”, diz. Além disso, “desmistificam” ideias como a de que “as pessoas de etnia cigana não se dão com cabo-verdianos; vemos nestas aulas que nem se põe a questão. Trabalham juntos, brincam muito e, através das atividades, sentem-se muito mais próximos uns dos outros”.
Lucília Gomes, professora pri-
mária, está na escola há 13 anos. “No início as pessoas nem sequer nos diziam ‘bom dia’, nem nos olhavam nos olhos. Agora não. Vêm, cumprimentam-nos, porque já houve um caminho que se percorreu, todos em conjunto. Quando vim para cá, todos os dias tinham meninos que saltavam a vedação e fugiam da escola. Agora não.”
A professora diz que, para muitas das crianças, o português é a segunda língua. “A primeira é o crioulo, e alguns ciganos têm um dialeto. Estas áreas que o MUS-E trabalha motivam-nos para as áreas mais difíceis como o Português e a Matemática.” Entram duas crianças na sala. “Olhe, são duas alunas minhas, ciganas.” Uma de 10, outra de 11, ambas deixaram já a Pedro Álvares Cabral. “Têm ido todos os dias às aulas?”, pergunta-lhes. “Nunca falto. Stora, estas mesas estão mais pequenas.” “Parece, tu é que cresceste”, responde-lhe a professora.
Já é noite quando saímos. Um bebé passa embrulhado numa capulana ao colo do pai.
No ano em que haveria de morrer, Menuhin, numa entrevista ao Libération, dizia estar provado que é possível “pacificar uma escola com a ajuda da música. Escutar, pronunciar, falar, cantar, são exercício de reciprocidade.”