O crime do Homem-Tigre para explicar o que é a literatura indonésia
As comparações entre a obra do autor e a de outros grandes nomes da literatura não surgem por acaso, mesmo que bom seja lê-lo sem tais paralelos
Otom da nota introdutória de Homem-Tigre está um pouco desfasada daquele que se segue nas páginas do romance de Eka Kurniawan, não só porque revela o autor indonésio – que nasceu no dia em que este país ocupou Timor – de uma forma demasiado elogiosa, como tenta perspetivar o livro de um modo antinatural. É o problema do tom, uma questão que na prosa muito interessante de Kurniawan nunca existe. Ainda por cima, desde que não interfiram diretamente, posfácios (no caso prefácio) destes fazem muita falta em livros primeiros de autores de outras civilizações quando são traduzidos para a nossa língua.
O título Homem-Tigre dá que pensar e, não se revelando mais do que está descrito na contracapa, é próprio para a história que o autor conta. Que é logo esclarecida no que respeita ao final nas primeiras linhas, tornando a tarefa do escritor muito mais difícil de ser levada. Ainda por cima a narrativa não vive do conteúdo esotérico que as duas palavras do título podem dar a entender, antes uma descrição da vida daquele povo. Que nos é apresentada pelo protagonista do romance de uma forma muito bem desenvolvida e em cinco capítulos apenas.
É impossível não se perceber lá muito para o fim aquilo que aconteceu e justifica este romance, mas até lá se chegar o leitor anda à deriva num mar de personagens muito bem estruturadas e de situações inesperadas. Tudo se passa entre duas famílias de classe muito baixa e deste modo vai-se ilustrando o que é sobreviver naquela sociedade. Transversal nas grandes questões do dia-a-dia indonésio, pondo de lado quase sempre os problemas políticos causados por lideranças corruptas e que desiludem os eleitores. No entanto, quando se termina o Homem-Tigre é impossível dizer que o retrato do país não está completo e que as desilusões provocadas pelas lideranças ficaram de fora.
Quanto ao lado esotérico do Tigre que se entrelaça com o Homem, estamos perante uma boa recuperação das lendas e daquilo que o misticismo pode fazer na vida das pessoas. A impossibilidade de fugir a um destino está sempre presente neste livro, como se a personagem principal se encaminhasse obrigatoriamente para a sua autodestruição sem poder fugir-lhe. É essa impossibilidade que gera neste romance uma velocidade de leitura a que não se pode escapar e que o transforma num dos melhores exemplos para se conhecer a literatura indonésia.
Eka Kurniawan não é conhecido por ser um autor de novelas desta dimensão, prefere publicar volumes maiores. Até se pode dizer que este Homem-Tigre poderia bem fazer parte de uma narrativa com muitas mais páginas, um capítulo em que se retrata uma sociedade rural em que as regras de comportamento são tradicionalistas e resultantes de séculos de obscuridade. Ambas as famílias em causa não fogem àquilo que imaginamos serem as daquele canto do planeta, mas Kurniawan sabe fazê-las transcender através da construção que faz em torno de cada personagem que vai aparecendo em cena, numa longa galeria onde não faltam as mulheres, as filhas, os filhos, os maridos ou os vizinhos e amigos.
Mesmo que o autor ponha o leitor perante personagens em tudo diferentes das que se poderiam esperar, mesmo que todos eles pudessem não ultrapassar o estatuto de estereótipos, o cenário psicológico em que as lemos gera a noção de que ao lado da casa de cada um existe toda uma matéria-prima pronta para entrar neste romance. Talvez o grande “truque” deste Homem-Tigre seja a sua história poder acontecer a cada esquina do mundo e não só na Indonésia.