Diário de Notícias

Quem acabou com a tropa?

- INÊS TEOTÓNIO PEREIRA ESCRITORA

Já disse aos meus filhos: vocês vão ter uma vida difícil. Eles ficam a olhar para mim. Levantam a cabeça do telemóvel e fixam-me com aquele olhar vazio. E eu com inveja daquela inércia, daquela vidinha descomplic­ada casa-escola-telemóvel-comer-telemóvel-Netflixdor­mir, desenvolvo. “Vocês não se interessam por nada, podiam estudar mais, ser mais ativos, ler alguma coisa além daquela linguagem cifrada do telemóvel.” E ameaço em jeito de profecia: “A vida vai encarregar-se de vos mostrar que não podem ser assim. Vão ver!” O olhar vazio, no entanto, desafia-me a enfatizar o drama: “Vocês deviam ir à tropa para aprenderem a obedecer, a serem responsáve­is, a coser botões, bolas! Quem foi a cabecinha brilhante que acabou com a tropa? Não devia ter filhos, o esperto.” E remato, enquanto dou meia volta: “Inúteis.”

E é assim. Pelo menos uma vez por semana é assim. Sei que não adianta nada. Mal eu começo a falar sei que eles ficam à espera de que eu me cale e os deixe em paz. Querem vazio, vácuo, nada. Mas uma pessoa, que por ser pessoa, mãe ou pai, não tem sangue de barata (nota mental: investigar a particular­idade do sangue da barata), perde a cabeça perante a apatia e o tempo a passar. Apatia e tempo a passar, enerva. Dantes chamava-se a isto preguiça, que é pecado mortal – daqueles que temos mesmo de nos arrepender ou estamos fritos. Mas agora não, agora é uma “caracterís­tica dos jovens”. Caracterís­ticas dos jovens e alterações climáticas são as duas grandes descoberta­s do século XXI. É preciso espevitar os jovens, eles precisam de razões para se levantar dos sofás, na melhor das hipóteses, ou da cama, onde ambicionam viver. E uma pessoa fica ali às voltas, tipo barata tonta (o que raio têm de especial as baratas para preenchere­m tantas figuras de estilo?). “Ele adora cinema”, como se fosse uma grande coisa. Mas gostarem já é qualquer coisa. Na maioria das vezes não sabem. “Então gostas de fazer o quê? Não sei.” “Queres ir a Nova Iorque ou a Roma? Pode ser.” Somos nós que temos a obrigação de os espevitar. E os professore­s. Mas os professore­s ainda podem mandar recados para casa, podem vingar-se – o menino não está motivado, não se interessa. Resolvam, paizinhos. Como? Se tivesse lata publicava um anúncio no OLX: “Como motivar um jovem apático, sabem?” Desisti. Eles que estão vivos que se motivem. “A vossa vida vai ser difícil”, vaticino cada vez que lhes facilito a vida. E irrito-me: comigo, que lhes facilito a vida, e com eles, porque aproveitam. Quem acabou com a tropa não tinha filhos, aposto.

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