Conversa em português num café de Budapeste
Estamos no Café Central em Budapeste e Monika Bense, 45 anos, vestido vermelho bem ajustado ao corpo, conversa connosco – o fotógrafo Adelino Meireles e eu – num português fluentíssimo, nascido no estudo nas universidades de Budapeste e do Porto mas sobretudo nas frequentes vindas a Portugal. De vez em quando menciona “a minha família portuguesa” e está a falar da família de Clara Riso, a diretora da Casa Fernando Pessoa que foi leitora de Português em Budapeste. Um caso, se bem percebi, de adoção recíproca.
Aproveitámos para partilhar um chá e uma fatia de dobos. É um bolo feito em sucessivas camadas de pão-de-ló, mais propriamente génoise, barradas com creme de manteiga fresca com chocolate, tudo coberto por caramelo estaladiço. Inventado no século XIX, foi dado a provar (e a aprovar) aos imperadores Sissi e Francisco José. A receita não ficou fechada em segredo: o criador ofereceu-a sem problemas.
Um artista tocava calmamente num piano de cauda quando Móni chegou. Ocupada com o doutoramento, não tem conseguido fazer traduções literárias, como as que fez com livros de Maria Velho da Costa, Rui Cardoso Martins, Afonso Cruz, José Gil, José Luís Peixoto. Recusou traduzir um autor português best seller porque não gostava do texto e não queria o nome dele no currículo dela. O doutoramento é so- bre literatura policial brasileira – Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna e o novíssimo Rodrigo Garcia Lopes.
Português de Portugal e português do Brasil são bem diferentes, diz ela, que nos vê de fora. Há uns meses, em Lisboa, tentou traduzir um texto de Clarice Lispector e correu mal, porque estava a pensar em português de Portugal. Pois é, ela também traduz Clarice e Luís Ruffato e outros autores não europeus. Móni diz que ao falar em português está a pensar em português, tal como quando está em Portugal, a não ser que fique muito tempo sozinha e aí volta a pensar em húngaro. Tem uma imagem para mostrar a dificuldade de falar, por exemplo, português e espanhol: é como se fechasse e abrisse gavetas.
Mas a maior dificuldade na adaptação ao português está noutro lado. É que o húngaro não é sequer uma língua indo-europeia, é de outra família e toda a estrutura da língua é diferente. Habituada a dar aulas de Português a húngaros, sabe que o mais fácil é o vocabulário, é só aprender. O pior é a ordem sintática, e é à volta disso que andam os 800 alunos que estudam Português em liceus e universidades do país, sob a coordenação do leitor João Henriques. Numa frase húngara, a parte a destacar fica no início, em português fica no fim. Agora é ela a explicar: “A leitura é uma coisa cronológica. Quando vemos um quadro, vemos tudo ao mesmo tempo, mas a leitura precisa de tempo. Quando quero que uma frase saia bem em húngaro tenho de reestruturá-la. Tenho de tomar decisões e fazer compromissos. Há sempre alguma coisa que se vai perder.”
Isto diz ela que estudou Filologia e que desistiu de ensinar húngaro a estrangeiros porque nem sequer existe um consenso sobre a quantidade de declinações que uma palavra pode ter: 12, 18, mais ainda? Os linguistas não conseguem concordar.
Para dar exemplos, aproveita a toalha de papel do Centrál Kávéház (o Café Central, digamos para facilitar), o mesmo espaço (mas tão diferente) onde passou tardes e noites quando era estudante. Fundado originalmente em 1887, foi convertido em cantina da universidade – na cave, havia um clube de jazz. Em 1999, o café reconstruído reabriu, esplendoroso, a fazer pensar nas palavras de George Steiner sobre a Europa, sobre o papel dos cafés na identidade do continente.
Em cada uma das faces da toalha de papel, há um poema de József Attila (em inglês) ou de Attila József (em húngaro) – os magiares dizem primeiro o apelido e depois o nome próprio. Um espaço em branco propõe-nos a escrita de um poema usando palavras desse texto de Attila: bater à porta, fresca, silêncio, com fome, papel, visitar.
O pianista descansa as mãos. Está na hora de Móni partir para uma milonga, no aniversário de uma amiga, e lá vai ela pela rua, vestido vermelho e saltos altos, pronta para dançar toda a noite.
Móni traduziu Maria Velho da Costa, Afonso Cruz, Rui Cardoso Martins. Recusou um autor best seller, não quer o nome dele no currículo “Quando quero que uma frase saia bem em húngaro, tenho de reestruturá-la, fazer compromissos. Há sempre alguma coisa que se vai perder” Fundado em 1887, o Café Central foi convertido em cantina da universidade, um clube de jazz na cave. Reabriu em 1999, esplendoroso