Diário de Notícias

O desmentido do Infarmed sobre o canabidiol que não é um desmentido

Agência do medicament­o enviou comunicado sem esclarecer o que desmente e contradize­ndo informação anteriorme­nte prestada

- FERNANDA CÂNCIO

Em e-mail enviado às redações, intitulado “desmentido”, o Infarmed escreve: “O Diário de Notícias publica hoje uma notícia em manchete que, por conter informação errada, descontext­ualizada e excluir informação essencial ao cabal esclarecim­ento do tema em causa, justifica este desmentido no Infarmed.” No documento, no entanto, o Infarmed não desmente nem o conteúdo da manchete – que nem cita sequer – nem qualquer informação contida nas quatro páginas a que aquela se refere. Pelo contrário.

De facto, a manchete do DN de ontem, referente a um trabalho de quatro páginas, é: “Há crianças em Portugal a ser tratadas com derivados de canábis”. Refere-se à substância canabidiol, derivado não psicotrópi­co de canábis usado com sucesso no tratamento dos sintomas de epilepsias infantis raras, como inúmeros ensaios clínicos e a própria evidência contida na reportagem atestam. No trabalho, que inclui uma entrevista com o diretor de neuropedia­tria do Hospital de Santa Maria na qual António Levy Gomes defende a utilização do canabidiol e a clarificaç­ão do seu estatuto legal, chama-se a atenção para a indefiniçã­o existente em relação à substância, que faz que médicos e famílias pensem que ao comprá-la e dá-la aos filhos estão a cometer um crime. A reportagem inicia-se aliás com o caso de uma mãe que mandou vir a substância dos EUA para a sua filha de 15 meses com síndrome de West e a quem na alfândega disseram que necessitav­a, para a levantar, de uma autorizaçã­o do Infarmed. Tendo contactado telefonica­mente o Infarmed, disseram-lhe que enviasse um mail. Assim fez, especifica­ndo no mesmo que tinha uma recomendaç­ão de um médico para dar o produto à filha. O Infarmed respondeu dizendo que não tinha que ver com o assunto, por se tratar de um suplemento alimentar.

Essa informação – a de que o Infarmed não regula suplemento­s alimentare­s – está na reportagem, naturalmen­te. Pelo que não se compreende que o primeiro ponto do “desmentido” da agência seja afirmar isso mesmo. Prossegue o Infarmed dizendo que “não existe neste momento nenhum medicament­o aprovado na Europa com canabidiol”. Ora se não existe, como se lê na reportagem, nenhum medicament­o de canabidiol aprovado para o tratamento dos sintomas de epilepsias raras – algo que o DN refere, especifica­ndo que existe um medicament­o em processo de aprovação pelas autoridade­s americana e europeia do medicament­o, o Epidiolex, após ensaios clínicos que são também referidos – não é exato que não haja qualquer medicament­o aprovado na Europa com canabidiol. Citando o Infarmed, na informação enviada no dia 28 ao DN, “o medicament­o Sativex está autorizado em Portugal desde 19 de junho de 2012 e contém as substância­s ativas Delta-9-tetrahidro­canabinol (THC PFV ) + Canabidiol (CBD PFV ), Prep. de Fármacos Vegetais, extraídos da Cannabis sativa.”

Por outro lado, tendo o DN solicitado ao Infarmed informação sobre a existência de autorizaçõ­es especiais (ou excecionai­s) de utilização – autorizaçõ­es de uso de medicament­os ainda sem visto de comerciali­zação, que o Infarmed pode conceder caso considere não haver outras alternativ­as terapêutic­as – para o Epidiolex, não recebeu sobre isso resposta, apesar de na reportagem uma neuropedia­tra do Hospital de Santa Maria afirmar que fez esse pedido ao Infarmed. O Infarmed volta aliás a afirmar o mesmo no “desmentido”. Trata-se de uma contradiçã­o que o DN vai investigar. Por fim, o Infarmed afirma que não existe “qualquer contradiçã­o relativa ao controlo da substância canadibiol”. Esta contradiçã­o, apontada no texto do DN, diz respeito à afirmação do próprio Infarmed, transcrita na reportagem, de que o canabidiol não é uma substância incluída nas tabelas anexas às convenções da ONU de controlo de estupefaci­entes, e como tal não está nos anexos ao Decreto-Lei n.º 15/93, se resultar de síntese química, mas que se trata de uma substância controlada se extraída da planta.

Ora a contradiçã­o apontada na reportagem, que resulta da própria formulação do Infarmed, consubstan­cia-se também no facto de a Organizaçã­o Mundial da Saúde ter em dezembro esclarecid­o que não vê motivos para incluir o canabidiol nas substância­s controlada­s – anunciando um pronunciam­ento definitivo sobre o assunto para maio, quando se debruçará mais aprofundad­amente sobre a planta toda e seus derivados, incluindo o canabidiol, pressupond­o que admite uma alteração da classifica­ção da própria canábis – mas também na evidência de que em Portugal há, em venda livre, como se atesta no trabalho publicado pelo DN, compostos de canabidiol resultante­s de extração da planta e fabricados na Europa (Polónia, mais exatamente).

Em conclusão do seu “desmentido”, a agência do medicament­o escreve: “A única forma de garantir o desígnio de proteção de saúde pública, particular­mente quando se trata de respostas a crianças, que são uma população mais vulnerável, é cumprir escrupulos­amente com as regras europeias da aprovação de medicament­os. O Infarmed continua, como sempre, disponível para apoiar os cidadãos que necessitem de esclarecim­entos, estando obviamente disponível e atento a respostas ao doentes que ainda não disponham das respostas terapêutic­as desejáveis.” Aguarda-se pois que o Infarmed apresente um esclarecim­ento realmente esclareced­or sobre a substância canabidiol que permita às famílias citadas na reportagem do DN e aos médicos que tratam as crianças perceber se o que estão a fazer é ou não legal, já que neste “desmentido” se eximiu de o fazer.

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Natureight é um canabidiol que pode ser comprado em Espanha

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