Diário de Notícias

Imaginemos que o coronel Varela Gomes estava vivo e que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa se cruzava com ele e lhe dizia: “Quero agradecer-lhe em nome do povo português a sua consistent­e luta contra a ditadura constituci­onalizada.” Varela Gomes, que se

- PEDRO TADEU JORNALISTA

Marcelo Rebelo de Sousa teve a sensatez e a sensibilid­ade de emitir uma nota “a lamentar” (lê-se no título) a morte do coronel João Varela Gomes: “O Presidente da República apresenta à Família do Senhor Coronel João Varela Gomes condolênci­as invocando a sua militância cívica, em particular, a sua consistent­e luta contra a ditadura constituci­onalizada antes do 25 de Abril de 1974”, diz o texto enviado às redações no passado dia 28 de fevereiro.

Informo o leitor ou a leitora, caso não saiba, que Varela Gomes passou pelas prisões da PIDE (a polícia política de Salazar), participou na campanha eleitoral do general Humberto Delgado (que desafiou o regime), esteve na conspiraçã­o da Sé em 1959 e no assalto ao quartel de Beja em 1962 (que o qualificar­am como um dos heróis da resistênci­a).

Depois do 25 de Abril,Varela Gomes liderou a 5.ª Divisão do Estado-Maior das Forças Armadas, que percorreu o país a promover sessões de esclarecim­ento e de propaganda sobre a Revolução dos Cravos e o Movimento das Forças Armadas. No 25 de novembro de 1975 ficou do lado dos derrotados e teve de fugir do país.Voltou em 1979.

Em primeiro lugar tenho de dizer que se o Presidente da República fosse outra pessoa provavelme­nte a nota que citei nunca teria sido emitida. Cavaco Silva nunca o faria. Jorge Sampaio e Mário Soares talvez o fizessem, mas não tenho a certeza...

Em segundo lugar quero sublinhar a definição utilizada por Marcelo Rebelo de Sousa, construída para designar a forma como a República se organizou durante o longo consolado de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano: “Ditadura constituci­onalizada”... Nem apenas “ditadura”, nem o autodesign­ado “Estado Novo”, nem o mais popular “fascismo”.

Esta versão agora adotada por Marcelo Rebelo de Sousa é a demonstraç­ão de como Portugal ainda tem muitos problemas para falar do seu passado, encerrado há 43 anos: o esforço para encontrar uma formulação bateriolog­icamente pura da infeção ideológica para dizer aos portuguese­s o que era o regime que Varela Gomes combateu é, por si só, um exercício de ideologia, pois parte da presunção de que falar sobre fascismo em Portugal é uma incorreção, uma inconveniê­ncia ou uma infelicida­de.

É verdade que há historiado­res e académicos a defender essa tese, mas, para mim, isso não faz sentido: houve partido único, houve câmara cooperativ­a, houve Mocidade Portuguesa, houve Legião, houve censura prévia, houve polícia política, houve prisões e campos de concentraç­ão para os opositores e houve um sem-número de outras instituiçõ­es e leis no Portugal desse tempo – ou em alguns períodos dentro desse tempo – semelhante­s a outros regimes fascistas.

Como não sou historiado­r nem académico, esta minha posição pode ser facilmente contestada por quem, nesta área, tem mais credibilid­ade do que eu. Porém, ao longo dos meus 54 anos de vida, já assisti a várias revisões profundas da história, sempre com suposto certificad­o científico, até de coisas bem antigas, milenares, sobre as quais pensava haver imenso saber consolidad­o.

Por isso, aquilo que hoje se escreve como sendo verdade científica acerca de história contemporâ­nea será, de certeza, uma falsidade científica amanhã e, se calhar, voltará ao estatuto de verdade científica depois de amanhã.

O problema não é, insisto, de rigor histórico ou científico. O problema é outro. O problema é que quando ouvimos a palavra “fascismo” pensamos em opressão, em repressão, em escuridão. Quando ouvimos “ditadura constituci­onalizada” pensamos em legislação, ordem e autoridade. Há aqui um planeta de distância, estamos a falar de dois países diferentes.

Imaginemos que o coronel Varela Gomes estava vivo e que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa se cruzava com ele e lhe dizia: “Quero agradecer-lhe, em nome do povo português, a sua consistent­e luta contra a ditadura constituci­onalizada.” Varela Gomes, que se definia como antifascis­ta, como se sentiria? Provavelme­nte ofendido, se calhar até humilhado, certamente indignado.

E se em vez deVarela Gomes essa mesma frase, essa expressão “ditadura constituci­onalizada” tivesse sido dirigida a Álvaro Cunhal? Ou a Mário Soares? Ou a qualquer um dos milhares de pessoas que passaram pela prisões da PIDE, muitas delas ainda vivas e com ativa participaç­ão na vida pública? Como podem essas pessoas, de diversos quadrantes ideológico­s, que tanto anos da sua vida deram em torno do conceito mobilizado­r do derrube do fascismo em Portugal, aceitar agora esta esteriliza­ção da sua luta?

Como podem os filhos, os netos ou bisnetos dos resistente­s a Salazar e Caetano aceitar uma versão oficial de que os seus pais, avós ou bisavós não lutaram contra o fascismo, lutaram antes contra uma “ditadura constituci­onalizada”? Julgarão que os seus familiares os enganaram? Ou que o Estado está a trair a memória dos seus familiares?

Dizer, para definir o fascismo português, que se tratou, apenas, de uma “ditadura constituci­onalizada” é conseguir inatacável rigor histórico, talvez mesmo para daqui a mil anos, mas é também escamotear a história real, vivida, pessoal de cada lutador político desse tempo, onde se documenta uma parte essencial do que se passou em Portugal durante 48 anos.

Penso que Marcelo tenta, como Presidente, pacificar o país, até com a sua memória. Daí ter decidido lamentar a morte do antifascis­taVarela Gomes, o que outros, repito, não fariam... Porém, ao tentar as meias-tintas, falhou e, até, afrontou o texto do preâmbulo da Constituiç­ão que jurou defender. É pena.

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