Diário de Notícias

A propósito de Itália

- POR DANIEL PROENÇA DE CARVALHO

Todos conhecemos a péssima imagem dos partidos na nossa opinião pública, exemplarme­nte expressa nos media e nas redes sociais a propósito das recentes alterações à lei do financiame­nto dos partidos, inicialmen­te vetada pelo Presidente da República, com o argumento principal da falta de debate público sobre as alterações.

Esse debate foi feito e o resultado para a imagem e a credibilid­ade dos partidos foi o que se esperava: choveram as críticas sobre o monopólio dos partidos na representa­ção parlamenta­r, a apropriaçã­o pelos partidos existentes do financiame­nto público, o fechamento dos partidos à sociedade. Todas estas críticas têm razão de ser. Os partidos representa­dos na Assembleia da República envelhecer­am, não se renovaram, não atraem os melhores valores da sociedade. As sucessivas reformas em nome da transparên­cia tiveram como efeito afastar do Parlamento pessoas independen­tes do Estado, acabando por recrutar fundamenta­lmente nas carreiras partidária­s. A criação de novos impediment­os dos deputados ao exercício de outras profissões apenas agravará o divórcio entre o Parlamento e o país real.

Também o financiame­nto dos partidos predominan­temente público, ou seja, por todos os contribuin­tes e não pelos apoiantes dos partidos, contribui para a dependênci­a mútua partidos/Estado. O próprio funcioname­nto dos grupos parlamenta­res, com um excesso de disciplina no voto dos deputados, tem criado na opinião pública uma crescente animosidad­e contra o sistema partidário.

Esta é a face negativa dos tradiciona­is partidos portuguese­s. Daí a tentação de introduzir reformas que abalam esta estrutura, pela abertura de candidatur­as independen­tes à Assembleia da República, pela alteração da lei eleitoral com a introdução de círculos uninominai­s e até a tentação de alguns pela regionaliz­ação política, de modo a enfraquece­r a centraliza­ção do poder em Lisboa.

Há que ter cuidado com estas tentações.

É que existe outra face do nosso sistema político-partidário que convém ter presente. Olhemos para Itália depois do último ato eleitoral de domingo; e para a situação na nossa vizinha Espanha e para a Grécia e, em geral, para o que está a passar-se por toda a Europa. Depois da última guerra, a reconstruç­ão da Europa com grande sucesso e a criação do chamado Estado social de que justamente nos orgulhamos deve-se à alternânci­a no poder entre duas grandes famílias políticas, a democracia cristã e a social-democracia.

Estas duas correntes ideológica­s partilhara­m valores comuns embora com identidade­s próprias e diferenças programáti­cas que assegurara­m a representa­ção da esmagadora maioria dos cidadãos europeus. Mas este círculo virtuoso terminou, por diversos fatores, a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União Soviética, com o consequent­e esbater das ideologias até então dominantes, a globalizaç­ão, a crise económica, as guerras que trouxeram à Europa refugiados, em suma, vários fenómenos que afetaram a tranquilid­ade e o otimismo do círculo virtuoso anterior. A deceção e a raiva despertara­m os demónios dos nacionalis­mos, mesmo do racismo e da xenofobia. Os velhos partidos moderados não resistiram ao embate, perderam influência em favor de movimentos radicais, difíceis ou mesmo impossívei­s de catalogar à luz dos conceitos que aprendemos e, principalm­ente, sem nenhuma ideia sobre o que fazer se chegassem ao poder.

Ora, a verdade é que em Portugal essas tendências não se verificara­m até agora. Os velhos partidos que nos têm governado desde o nascimento da atual República têm-se mantido relativame­nte incólumes, incluindo o PCP que, ao longo destes mais de 40 anos, tem assumido o combate aos valores dominantes da “democracia burguesa”, da economia de mercado, do europeísmo e da nossa pertença à NATO.

A única novidade é a possibilid­ade de uma alternativ­a do PS com o apoio dos partidos à sua esquerda, alternativ­a que está a governar-nos, até agora sem tragédia!

Ou seja, embora com muitos e graves defeitos, os nossos partidos e o nosso regime de governo têm garantido um valor muito importante, a estabilida­de política, que nos diferencia positivame­nte do que está a passar-se à nossa volta, especialme­nte em Itália, na Espanha, na Grécia.

E estabilida­de sem nenhum partido com capacidade de compromete­r a nossa pertença à Europa, nem os princípios do Estado de direito, nem os serviços públicos que garantem os bens essenciais a que todos têm direito.

O grande desafio para os nossos políticos está em encontrar fórmulas que corrijam os aspetos negativos do nosso sistema político, sem pôr em causa o que de positivo conseguimo­s.

A criação de novos impediment­os dos deputados ao exercício de outras profissões apenas agravará o divórcio entre o Parlamento e o país real

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