A propósito de Itália
Todos conhecemos a péssima imagem dos partidos na nossa opinião pública, exemplarmente expressa nos media e nas redes sociais a propósito das recentes alterações à lei do financiamento dos partidos, inicialmente vetada pelo Presidente da República, com o argumento principal da falta de debate público sobre as alterações.
Esse debate foi feito e o resultado para a imagem e a credibilidade dos partidos foi o que se esperava: choveram as críticas sobre o monopólio dos partidos na representação parlamentar, a apropriação pelos partidos existentes do financiamento público, o fechamento dos partidos à sociedade. Todas estas críticas têm razão de ser. Os partidos representados na Assembleia da República envelheceram, não se renovaram, não atraem os melhores valores da sociedade. As sucessivas reformas em nome da transparência tiveram como efeito afastar do Parlamento pessoas independentes do Estado, acabando por recrutar fundamentalmente nas carreiras partidárias. A criação de novos impedimentos dos deputados ao exercício de outras profissões apenas agravará o divórcio entre o Parlamento e o país real.
Também o financiamento dos partidos predominantemente público, ou seja, por todos os contribuintes e não pelos apoiantes dos partidos, contribui para a dependência mútua partidos/Estado. O próprio funcionamento dos grupos parlamentares, com um excesso de disciplina no voto dos deputados, tem criado na opinião pública uma crescente animosidade contra o sistema partidário.
Esta é a face negativa dos tradicionais partidos portugueses. Daí a tentação de introduzir reformas que abalam esta estrutura, pela abertura de candidaturas independentes à Assembleia da República, pela alteração da lei eleitoral com a introdução de círculos uninominais e até a tentação de alguns pela regionalização política, de modo a enfraquecer a centralização do poder em Lisboa.
Há que ter cuidado com estas tentações.
É que existe outra face do nosso sistema político-partidário que convém ter presente. Olhemos para Itália depois do último ato eleitoral de domingo; e para a situação na nossa vizinha Espanha e para a Grécia e, em geral, para o que está a passar-se por toda a Europa. Depois da última guerra, a reconstrução da Europa com grande sucesso e a criação do chamado Estado social de que justamente nos orgulhamos deve-se à alternância no poder entre duas grandes famílias políticas, a democracia cristã e a social-democracia.
Estas duas correntes ideológicas partilharam valores comuns embora com identidades próprias e diferenças programáticas que asseguraram a representação da esmagadora maioria dos cidadãos europeus. Mas este círculo virtuoso terminou, por diversos fatores, a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União Soviética, com o consequente esbater das ideologias até então dominantes, a globalização, a crise económica, as guerras que trouxeram à Europa refugiados, em suma, vários fenómenos que afetaram a tranquilidade e o otimismo do círculo virtuoso anterior. A deceção e a raiva despertaram os demónios dos nacionalismos, mesmo do racismo e da xenofobia. Os velhos partidos moderados não resistiram ao embate, perderam influência em favor de movimentos radicais, difíceis ou mesmo impossíveis de catalogar à luz dos conceitos que aprendemos e, principalmente, sem nenhuma ideia sobre o que fazer se chegassem ao poder.
Ora, a verdade é que em Portugal essas tendências não se verificaram até agora. Os velhos partidos que nos têm governado desde o nascimento da atual República têm-se mantido relativamente incólumes, incluindo o PCP que, ao longo destes mais de 40 anos, tem assumido o combate aos valores dominantes da “democracia burguesa”, da economia de mercado, do europeísmo e da nossa pertença à NATO.
A única novidade é a possibilidade de uma alternativa do PS com o apoio dos partidos à sua esquerda, alternativa que está a governar-nos, até agora sem tragédia!
Ou seja, embora com muitos e graves defeitos, os nossos partidos e o nosso regime de governo têm garantido um valor muito importante, a estabilidade política, que nos diferencia positivamente do que está a passar-se à nossa volta, especialmente em Itália, na Espanha, na Grécia.
E estabilidade sem nenhum partido com capacidade de comprometer a nossa pertença à Europa, nem os princípios do Estado de direito, nem os serviços públicos que garantem os bens essenciais a que todos têm direito.
O grande desafio para os nossos políticos está em encontrar fórmulas que corrijam os aspetos negativos do nosso sistema político, sem pôr em causa o que de positivo conseguimos.
A criação de novos impedimentos dos deputados ao exercício de outras profissões apenas agravará o divórcio entre o Parlamento e o país real