Suryyia Manzoor “Somos quatro irmãs paquistanesas e três já temos doutoramento”
Conheci a académica paquistanesa Suryyia Manzoor graças a um convite da embaixada em Portugal para uma palestra organizada em conjunto com o Rotary Club e intitulada “O papel da mulher no desenvolvimento da sociedade paquistanesa”. Ela própria membro do Rotary Club de Multan ( onde vive), a cientista doutorada em Química Analítica aceitou dar esta entrevista no seu gabinete na Faculdade de Ciências de Lisboa, onde faz o pós-doutoramento. A conversa foi em português, aprendido no Brasil, onde se doutorou. Como paquistanesa, alguma vez sentiu que ser mulher tornava mais difícil estudar, fazer todo o percurso académico até chegar ao que é hoje, uma doutorada em Química Analítica? No meu caso, não senti isso. Porque o meu pai, que era da Força Aérea, sempre me ajudou bastante. Não venho de uma família da elite, mas sim de gente com origens rurais, mas a minha família sempre me apoiou muito. Muitas vezes o pior não é ser mulher, é ser pobre. Portanto, a sua família percebeu sempre que seria bom para a filha estudar? Sim, e não só eu. Somos quatro irmãs e um irmão mais novo. Todas estudámos na universidade e três de nós fizemos doutoramento: eu no Brasil, uma irmã em Espanha, a outra na Inglaterra. A minha outra irmã fez mestrado no Paquistão. Assim, para nós, sermos mulheres nunca foi um problema. O meu irmão também está na universidade. No seu tempo ainda de criança viu Benazir Bhutto ser eleita primeira-ministra do Paquistão em 1988. Foi uma inspiração para si como paquistanesa? Sim. Antes dela já tinha havido outras mulheres influentes, como Fatima Jinnah, mas não conseguiram ganhar as eleições. Benazir sim, conseguiu. Chegou a primeira-ministra e abriram-se mais portas para as paquistanesas. O Paquistão tornou-se um país melhor para as mulheres depois de Benazir governar? Sim, mas outras mulheres antes tiveram também um papel importante. Fatima Jinnah logo desde o momento da fundação do Paquistão em 1947, ao lado do irmão, Mohammed Ali Jinnah, e mais tarde como candidata presidencial. Ou Ra’ana Liaquat Ali Khan, que foi governadora do Sind. Mas com Benazir ficou evidente que a população aceitava mulheres em altos cargos, políticos e não só. Ajudou mesmo muito a progressão dos direitos das mulheres no Paquistão. No seu caso, além do apoio dos seus pais, também beneficiou de pertencer já à geração pós-Benazir? Foram muitos os fatores: os meus pais sempre a incentivar os estudos, as minhas professoras, que me ajudaram muito. E também o exemplo dessas mulheres fortes como Fatima Jinnah e Benazir. Assim, devo muito a muitas mulheres, a começar pela minha mãe. As suas irmãs são mais novas. Foi um exemplo para elas? Sim. Fui a primeira pessoa da família a estudar na universidade. Fez o doutoramento no Brasil e agora tem uma bolsa de investigação em Portugal. Sente diferença entre a forma como as mulheres são tratadas nos dois países lusófonos e no seu país? Na verdade, pessoalmente nunca senti uma diferença muito grande. O que eu percebi sempre é que a pobreza é a culpa maior de poucas mulheres estudarem no meu país. Eu sou professora numa universidade paquistanesa e estive no último comité de admissões. E ad- mitimos mais mulheres do que homens. Recordo-me de ter visto um pai ter vindo para pagar a propina da filha. Estava com roupa velha. Percebi que era pobre, mas estava a fazer um esforço para a filha estudar. Há muitos casos assim. O Paquistão, segundo país muçulmano mais populoso, também uma potência nuclear, e com grande produção científica, cultural e literária, é muitas vezes associado aos golpes militares, no passado, e hoje ao extremismo religioso e ao terrorismo. Como é que lida com a imagem do seu país? Falam-me muito do terrorismo. E eu digo sempre que o Paquistão é uma vítima do terrorismo. E que os media sempre mostram os atentados, as bombas, mas nunca procuram ir mais além. Mostrar a diversidade do país. É preciso não esquecer que o Paquistão nasceu há pouco tempo, pouco mais de 70 anos. E nestes 70 anos tivemos de lutar muito para nos desenvolvermos. Somos grandes produtores agrícolas, e as mangas destacam-se. Também exportamos têxteis e produtos farmacêuticos. A economia está a crescer. E em termos de educação há mais homens e mulheres a estudar do que antes. Tudo vai evoluindo. E em termos de democracia? Depois do período de golpes militares, os civis finalmente governam. Sim. Mas continua a haver problemas de corrupção. É preciso acabar com isso. O país está a lutar contra os problemas. Sente-se uma espécie de embaixadora oficiosa do seu país? Pensa que com a sua história ajuda a desfazer ideias feitas sobre o Paquistão? Até no próprio país. O meu percurso, o facto de ter estudado e vivido no estrangeiro, gera muita curiosidade. Os meus alunos perguntam como é, como se consegue bolsas, como se vive lá fora. Tive alunas que foram dizer às famílias que se eu podia estudar no estrangeiro também elas podiam. O que representa para si Ali Jinnah, o fundador do Paquistão, que concebeu o país como uma pátria para os muçulmanos da Índia? É um herói nacional. Desde criança aprendemos na escola como liderou o movimento que levou à criação do Paquistão. Para nós é como um pai. Mas existem minorias hindu, sikhs e cristãs no Paquistão e agora até foi eleita uma senadora hindu. Tem amigos de outras religiões? Sim, tenho amigos hindus e cristãos no Paquistão. E alguns sikhs. E tem alunos das minorias? Sim, tenho. Esta hindu ter sido eleita é importante como símbolo da integração? Muito. Porque há preconceito no estrangeiro contra o Paquistão e há quem diga que as minorias não têm direitos. Como vê a rivalidade com a Índia? É um tema muito complexo. E muito por causa de Caxemira. Existe rivalidade entre os governos e também quando as duas equipas se enfrentam nos jogos de críquete. Mas entre as pessoas no dia-a-dia é diferente. Se um indiano visita o Paquistão é bem recebido. Recebemos muitos sikhs porque têm templos em Lahore e são muito bem tratados.