Diário de Notícias

SOARES É FIXE E O TARZAN BOY TAMBÉM. MARKL E A RTP REGRESSAM A 1986

A série criada por Nuno Markl mostra-nos a vida de um grupo de jovens lisboetas no início de 1986. Estreia-se na terça-feira

- MARIA JOÃO CAETANO

Tiago tem 17 anos e gosta de The Smiths e de alugar filmes no videoclube. Depois da morte da mãe, Tiago mora sozinho com o pai, que é crítico de cinema e comunista ferrenho, e no liceu os seus melhores amigos são Patrícia, uma gótica sempre vestida de preto, e Sérgio, um metaleiro, fã de Iron Maiden e de filmes de pancadaria, que também gosta de beber leite com muito Cola Cao. Mas a paixão de Tiago é Marta, a betinha filha do dono do videoclube. Em 1986 não havia telemóveis nem internet mas Portugal tinha acabado de entrar para a CEE e o país vibrava com as eleições presidenci­ais: os candidatos eram Mário Soares e Freitas do Amaral e tudo poderia acontecer. Até um caixa-de-óculos beijar a rapariga mais popular da escola.

Qualquer semelhança entre 1986, a série que se estreia na terça-feira na RTP1, e as memórias que temos desse ano não são mera coincidênc­ia. Ver 1986 é como entrar numa cápsula do tempo. Vestimos as camisolas de lã tricotadas pelas mães, fazemos umas dobras nas calças de ganga e vamos ao shopping center ou então sentamo-nos a ver o 1,2,3 na televisão. Gritamos “Prá Frente Portugal” ou “Soares é Fixe” ao mesmo tempo que vivemos uma grande paixão e sonhamos com o primeiro beijo.

A ideia para 1986 foi de Nuno Markl, que, em 2001, começou a “alinhavar umas notas” para o que poderia ser o guião de um filme centrado num videoclube. “Era uma espécie de Cinema Paraíso para a minha geração”, explica o argumentis­ta. “O Cinema Paraíso tem aquela mística das bobinas e a minha geração é do VHS, nós conseguimo­s encontrar algum romantismo nas cassetes de vídeo.” A ideia “ficou a marinar durante anos”, até que em 2016 – depois de, pelo meio, ter criado a rubrica Caderneta de Cromos na Rádio Comercial, em que recordava muito do imaginário dos anos 80 – voltou a ganhar vida, agora na forma de uma série de televisão. O videoclube continua lá, mas há muito mais a acontecer em 1986.

A Nuno juntaram-se, na escrita da série, a irmã, Ana Markl, o argumentis­ta Filipe Homem Fonseca e a jornalista Joana Stichini Vilela. Entre as memórias que cada um trouxe e a investigaç­ão que fizeram, nasceu 1986. A ação passa-se entre janeiro e fevereiro desse ano, ou seja, entre a primeira e a segunda volta das eleições, porque lhes pareceu que aquelas eleições “eram o momento ideal para criar uma ficção: foi um momento tenso mas muito divertido, foram as eleições mais pop da história, sobretudo a segunda volta, quando o país ficou dividido entre Soares e Freitas”, explica Markl. Só essas eleições poderiam dar origem a esta história, que tem algo de Romeu e Julieta: o pai de Tiago vota Soares (contrariad­o), o pai de Marta é apoiante de Freitas.

Muito do que ali acontece é obviamente inspirado na vida de Nuno e Ana Markl, desde logo porque a ação se passa na zona de Benfica e no liceu que os dois irmãos frequentar­am. Em 1986, Nuno tinha 15 anos (Ana é oito anos mais nova) e era aquilo a que se costuma chamar um nerd. “Eu não sabia em que

Com grande rigor na recriação histórica, 1986 é inspirada nas memórias de Nuno Markl e da sua irmã Ana, que cresceram em Benfica

grupo me havia de integrar, era um caixa-de-óculos e era tímido, portanto estava integrado no grupo dos tipos que levam caldos. Refugiava-me muito na cultura popular, na música, nas séries, nos filmes, e a desenhar. Passava muito tempo a desenhar e a escrever”, recorda. É fácil ver esse jovem Markl na personagem de Tiago (Miguel Moura e Silva). Da mesma forma, o pai de Tiago (Adriano Carvalho) é muito (mas muito) inspirado no pai Markl. A avó de Marta (Ana Bola) tem algumas das manias das avós da família. E as personagen­s de Laura Dutra (Marta), Miguel Partidário (Sérgio), Eva Fisahn (Patrícia) e Gonçalo (Henrique Gil) inspiram-se nas vários tribos que existiam na altura.

“É uma espécie de Famous Five de Benfica”, brinca o humorista, que não nega as influência­s de séries como O Diário de Adrian Mole ou dos filmes de John Hughes, de que é grande fã – haverá um episódio inspirado em Breakfast Club, por exemplo. Aliás, todos os episódios estão cheios de piscadelas de olho a quem viveu aqueles tempos e de homenagens, seja ao filme Os Goonies seja à “fantasia eletrónica” da série Electric Dreams. Ape- sar disto, e do cuidado imenso colocado na recriação histórica, Nuno Markl não gostaria que 1986 fosse “um museu dos anos 80”. É verdade que ele se deu ao trabalho de fazer uma playlist com a música que cada personagem ouviria no seu walkman (as listas serviram para os atores e estão no Spotify para quem quiser ouvir), é verdade que ele fez uma lista exaustiva de tudo o que deveria estar no quarto destes miúdos, é verdade que pesquisara­m tanto que até sabiam a programaçã­o da televisão e o estado de tempo em cada dia concreto em que se passam as cenas. “Há muita picuinhice”, admite. “Poderá haver um ou outro deslize, mas tivemos imensa atenção.” Por exemplo, com as datas de estreias dos filmes e os lançamento­s das músicas – mais facilmente haverá referência­s aos sucessos de 85, que ainda estavam a dar, do que aos hits de 86, pois estamos no início do ano.

Mas também é verdade que o mais importante aqui é contar uma história: “É uma série com jovens. São pessoas em busca do amor e de um sentido para a vida, que pode estar ou não na eleição do presidente. Há coisas que são intemporai­s na espécie humana, que têm que ver com sentimento­s e paranoias, e estas coisas mantêm-se. A grande diferença é que estas pessoas não tinham telemóveis nem internet. Se querem falar com alguém têm de arranjar cabines ou esperar até chegar a casa para usar o telefone.”

1986 tem realização de Henrique Oliveira. A cereja no topo deste bolo é a banda sonora, que, além de integrar os êxitos da altura, tem uma série de temas novos compostos por músicos contemporâ­neos mas soando como se fossem dos eighties. A responsabi­lidade é de João Só mas por lá encontramo­s ainda Catarina Salinas e Lena d’Água (cantam o tema do genérico), Ana Bacalhau, Miguel Araújo, Samuel Úria, Márcia & Tatanka, David Fonseca e Rita Redshoes.

A equipa de 1986 está tão feliz com o resultado que antes mesmo da estreia já estão a pensar numa segunda temporada. “Não sabemos se vai haver mas, se tudo correr bem, gostaríamo­s de fazer uma segunda temporada que se passe no verão”, adianta Nuno Markl. “Esta temporada é muito invernosa. E o verão de 1986 também foi fantástico, foi o verão do Mundial do México e em que surgiu nas lojas o gelado Calipo.” A geração que cresceu a assobiar o tema de Verão Azul também quer contar como eram os seus dias de sol.

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 ??  ?? Ao lado: Tiago com o pai, numa cena de 1986. Em baixo: o argumentis­ta Nuno Markl em campanha com Marta e Gonçalo
Ao lado: Tiago com o pai, numa cena de 1986. Em baixo: o argumentis­ta Nuno Markl em campanha com Marta e Gonçalo

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