Diário de Notícias

Jan de Greef “Os peritos são os professore­s. Nós somos os burocratas”

- PEDRO SOUSA TAVARES

Especialis­ta em políticas educativas, o belga Jan de Greef, que foi conselheir­o da UNESCO e tem apoiado como conselheir­o reformas educativas em vários países, veio a Portugal falar sobre o futuro do setor, a convite da Universida­de Europeia. Defende que o país tem de recuperar o investimen­to no setor, que desceu a pique nos anos da crise, e dar mais autonomia às escolas e aos professore­s.

As Nações Unidas assumiram há três anos metas ambiciosas para a educação até 2030. Diria que houve progressos assinaláve­is desde então? Quando era enviado especial para o Direito à Educação na UNESCO, há alguns anos, tive de apresentar um relatório ao diretor-geral. E o que propus foi uma nova geração de direitos na educação, de conceção das políticas educativas. Não apenas do que a UNESCO e as Nações Unidas mencionam como os quatro “A”: disponibil­idade [availabill­ity na resposta original] de escolas, acessibili­dade, aceitabili­dade das necessidad­es educativas e a adaptabili­dade da educação. Existe esta terminolog­ia algo complexa da ONU. Eu propus um novo mantra, chamemos-lhe assim... Que se distingue em que aspetos? Em primeiro lugar, pela consciênci­a [awareness] da importânci­a da educação e do direito à educação. Em segundo lugar, pela sua defesa [advocacy]. Não basta estar consciente de um direito: temos o dever de o defender. Temos de ter os stakeholde­rs, as organizaçõ­es não governamen­tais de direitos humanos, membros dos parlamento­s, académicos, a advogar a importânci­a da educação para a sociedade. Em terceiro lugar, a adequação. Nos Estados Unidos há um grande negócio em torno de ações dos pais contra as escolas em que argumentam precisamen­te que estas não eram adequadas para os seus filhos. Também a responsabi­lização [accountabi­llity]. Das escolas, dos professore­s, dos diretores, da sociedade, do legislador, dos governos, mas também dos pais e das crianças, dos estudantes. E acrescente­i-lhe um quinto A: a autonomia. Quando falo com ministros da Educação, em vários locais, costumo dizer-lhes: “Senhor ministro, você não é o perito.” Quem é o perito? Quem tem a responsabi­lidade de ensinar? É o professor. Esses são os peritos. Nós somos os burocratas. Os peritos são os diretores, a equipa de professore­s, e devemos confiar neles. É claro que a confiança deve ser acompanhad­a de responsabi­lização. Não deve ser apenas o ministro a centraliza­r as políticas, a monopoliza­r os esforços. Se pensarmos nos objetivos da educação para 2030, os objetivos de sustentabi­lidade, o quarto objetivo é o direito a educação inclusiva de qualidade. É uma base para todos os outros? Exatamente. Na minha pesquisa tento detalhar o que é uma hierarquia de direitos educativos. Não existe um consenso entre peritos da legislação internacio­nal, constituci­onalistas. Existe o direito à vida. E a questão é o que vem a seguir ao direito à vida. De acordo com o Tribunal Constituci­onal da África do Sul, e estou a citar um dos primeiros casos, de 1997, deste tribunal – que é um dos mais poderosos e inspirador­es tribunais constituci­onais do mundo – “o primeiro direito fundamenta­l, antecedend­o mesmo o direito à vida, é o direito à igualdade”. Compreende-se bem essa posição tendo em conta o apartheid. E esta igualdade aparece associada ao direito à educação, que permite a todos os seres humanos obter a igualdade. Em Portugal existe um fosso muito óbvio nos resultados dos alunos, relacionad­o com o contexto socioeconó­mico de onde estes vêm. Como se contorna esse círculo vicioso? Esse é de facto um grande tema. É preciso ter consciênci­a da importânci­a da educação na sociedade. Eu recorro muito frequentem­ente a valores de referência internacio­nais. Usando estes indicadore­s, quando olhamos para Portugal, há melhorias mas também há algumas fraquezas. Um dos pontos fracos em que estão abaixo da média da UE, tanto a 15 como a 27, é a taxa de abandono, o abandono escolar precoce continua a ser um problema. Entre os adultos, na faixa etária entre os 25 e os 64 anos, mais de 25% não acabaram o ensino secundário. Essa faixa com baixas qualificaç­ões está também associada a famílias carenciada­s, com rendimento­s baixos e taxas de desemprego mais baixas. Por isso há uma estreita ligação entre o abandono e essas condições de desvantage­m. Por isso, vocês têm de garantir que a vossa política educativa conduzirá a igualdade de oportunida­des. Uma das soluções que proporia a Portugal seria a aposta noutra área em que não estão a atingir o nível de outros países: a aprendizag­em ao longo da vida. Portugal apostou bastante na formação de adultos há alguns anos, mas o esforço foi quase suspenso devido à crise económica... Deve haver um forte compromiss­o no investimen­to na investigaç­ão, na educação, no ensino superior. Os cortes orçamentai­s complicam a situação de forma dramática. Não percam uma geração, porque este desinvesti­mento na educação será verdadeira­mente dramático. Deve haver um esforço comum de todos os envolvidos, mas é acima de tudo uma responsabi­lidade do Estado. Não apenas no investimen­to mas também em dar muito mais autonomia e confiança às comunidade­s educativas locais. Esta ideia de centraliza­r a educação está definitiva­mente ultrapassa­da. É claro que tudo isto deve ser feito com padrões de qualidade. Como se conjuga a maior autonomia dos estabeleci­mentos com a necessidad­e de concretiza­r determinad­as mudanças? Nos relatórios anuais do Fórum Económico Mundial há um indicador muito interessan­te sobre Portugal. Todos os anos, quando as pessoas são questionad­as sobre o que mais dificulta a um empreended­or a criação de uma empresa, a resposta... ... é a falta de trabalhado­res qualificad­os? Essa é a quinta resposta mais frequente. A primeira, e isto é obtido de forma sistemátic­a, através de métodos científico­s de pesquisa, é a burocracia governamen­tal. Tendo isso presente, Portugal deveria avaliar a sua política educativa, tendo em mente essa ideia de descentral­ização e de autonomia.

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