CARLOS BARRETTO
“SE NÃO TOCO FICO DOENTE. É COMO UMA DROGA”
Aos 6 anos cantarolava solos de Miles Davis e de Charlie Mingus, era o que se ouvia lá em casa. Teve formação clássica, a pensar no contrabaixo que o tinha fascinado quando assistiu ao Cascais Jazz, em 1972. Em Viena estudou com um dos melhores do mundo, e ganhou dinheiro a tocar na rua. Em Paris fez o mesmo mas nessa altura já só queria saber de jazz. O trio Lokomotiv, que criou há 20 anos com Mário Delgado e José Salgueiro, acaba de lançar mais um disco, Gnosis. No dia 22 vão tocar no Titanic, em Lisboa. Dedica-se exclusivamente ao jazz ou há ainda algo da música clássica? Não me considero um músico de jazz, sou simplesmente um músico. Gosto de toda a música e de fazer perninhas e vasos comunicantes com todos os estilos musicais. Mas gosto sobretudo de improvisar. Como se consegue manter 20 anos uma formação de três músicos? Lancei o convite há 20 anos ao Mário Delgado e ao José Salgueiro e eles aceitaram de bom grado. Desde aí temos estado a evoluir juntos. Até me parece impossível, passou tão depressa e fizemos tanta coisa… Estivemos praticamente em todo o mundo a tocar. Mudámos de estilo jazzístico várias vezes, mas têm sido 20 anos bastante ricos. E há a questão da amizade que se tem desenvolvido ao longo dos anos. Também temos muitas discussões, mas isso são as coisas dos bons amigos. Sempre que tocamos temos um gozo enorme. Todos nós também fazemos parte de outros projetos, o Mário e o Salgueiro tocam com muitas bandas. Mas é neste trio que sublimamos os nossos prazeres de tocar. É onde nos sentimos mais livres. O novo disco, Gnosis, só tem criações vossas. Como foi feito? Andávamos a dizer há dois anos que era altura de fazer um disco, até por causa de fazermos 20 anos. Obrigámo-nos a compor e a escrever de propósito. Apareci com três temas meus, três composições já feitas – Lugar sem Lugar, Porta Líquida e Gnosis – títulos inspirados no poeta José Anjos, um amigo com quem tenho um trabalho de poesia e música. Quis dar ao disco o título Gnosis porque significa a procura do conhecimento de si próprio, o conhecimento baseado em quatro pilares – a arte, a filosofia, a ciência e a religião. A religião não no sentido das igrejas oficiais, mas no sentido de religiosidade, de espiritualidade. O autoconhecimento adquire-se com a experiência, o que tem que ver com os 20 anos dos Lokomotiv, esta aprendizagem que temos tido juntos. Como se faz uma composição a três? É ir para o estúdio e gravar, sem rede. Cada tema tem uma característica própria mas é improvisado e vai ao sabor do que acontece. Continua a pintar? Estou com muitos projetos musicais diferentes, oito, nove ou dez projetos em que colaboro, e não tenho muito tempo. Em casa não tenho um espaço para a pintura, e ainda por cima gosto de fazer formatos grandes. A minha profissão é a música, pintar é um hobby. Mas tenho saudades. Cresceu com música clássica e jazz? O meu pai era um fanático de jazz, de música brasileira e de alguma música portuguesa, tipo Carlos Paredes e Amália Rodrigues. A minha mãe era mais da clássica. Há solos do Miles Davis ou do Charlie Mingus, grandes génios, que tenho de cor desde os 6 anos, cantarolava-os. Teve formação clássica, no Conservatório? Fui para lá com a ideia do jazz. Tinha havido os festivais de Cascais, que começaram em 1971. Eu não fui ao primeiro, tinha 14 anos e o meu pai não me deixou ir. Perdi grupos incríveis, o Miles Davis, o Ornette Coleman, os Giants of Jazz com o Thelonius Monk, o Dizzie Gillespie. Fui ao segundo, para ver os contrabaixistas. “É isto que eu quero fazer.” Comecei a estudar música clássica e mudei um pouco a minha direção. Quando acabei o Conservatório entrei para a Orquestra Sinfónica da RDP. Tirava licenças sem vencimento da orquestra e ia para Viena. Um dia o maestro não me deu licença e despedi-me, em 1984. Fui para Paris e nunca mais deixei a música improvisada. Em Viena estudou música clássica? Em Viena tive um grande professor, Ludwig Streicher, que faleceu há uns anos, um dos melhores contrabaixistas do mundo que tocava como solista concertos para contrabaixo e orquestra. Esteve cá a fazer uns cursos de verão, gostou de mim e convidou-me para estudar com ele. Eu estava mais virado para a música clássica, fascinado com ele e a vida musical de Viena. Passava com o contrabaixo na rua ou no metro e todos se metiam comigo. Tocava na rua? Era para ter uma bolsa da Gulbenkian e à última hora tiraram-me o tapete dos pés. Fui sem saber o que me ia acontecer em termos financeiros e comecei a tocar na rua. Havia uma rua pedonal, junto à Academia, onde muitas formações tocavam e as pessoas ficavam a ouvir. Punham moedas e até notas. Comecei a tocar em formações de jazz e de música clássica. Como é estudar com um dos melhores do mundo? Tinha quatro horas de língua na Academia, mas todas as disciplinas teóricas eram em alemão. As aulas com o mestre eram bastante exigentes, tínhamos de estudar seis horas por dia no mínimo, senão passava-nos para os assistentes. Muitas vezes não tinha tempo para estudar. Tocava nos clubes até às três da manhã, às 8.30 tinha de estar na Academia, dormia duas horas por noite. Não me arrependo nada, foi das fases mais ricas da minha vida. Chegava a fazer 18 horas de música por dia. Voltou para Portugal e foi para Paris? Sentia-me frustrado em Lisboa. Em 1982, o país estava no marasmo. Decidi ir para Paris à aventura. Recorri ao mesmo expediente de ir tocar para a rua, encontrei músicos de jazz com quem me identificava e comecei a tocar com eles. Conheci músicos incríveis, bastante famosos em termos mundiais, vindos de Nova Iorque. O Lee Konitz, o Steve Lacy, o Mal Waldron, muita gente. Fico admirado como toquei com aquela gente toda. Como é hoje o ambiente em Portugal? Há muitas escolas, muitos músicos jovens a sair dessas escolas e tocam bastante bem. Eles têm acesso à informação com a internet, com o aparecimento das fnacs. Onde é que esta gente toda vai trabalhar? Deveria haver mais clubes de jazz, para os jovens poderem desenvolver as suas aptidões. Não é uma música comercial, vender é difícil. O jazz em Portugal teve iniciadores, um núcleo muito identificável. A minha foi a primeira geração de músicos de jazz profissionais, nos anos 1990. Antes havia pessoas que tocavam mas tinham outras profissões. Hoje falam consigo com reverência? Os músicos jovens chamam-me mestre, o que quer dizer que estou velho. Mas mostra que os jovens têm respeito pelas pessoas mais velhas e sabem de onde eu venho, vão informar-se do que fiz. Não me sinto velho, continuo a ser uma criança. Continua a trabalhar muitas horas? Sempre que posso. Quando não estou com o instrumento de uma forma diária parece que fico doente. É como uma droga, só que uma droga boa. Não consigo estar mais do que dois ou três dias sem pegar no instrumento, começo a ficar maluco. Toco em casa as minhas quatro horinhas diárias. Quantos contrabaixos tem? Tenho um acústico e um eletroacústico que quase não tem corpo. O acústico tenho-o há mais de 20 anos. Os contrabaixos não se compram novos, quanto mais antigos melhor. Se for antigo e bem conservado, a madeira está mais seca e o som tem mais personalidade. Comprei-o a um luthier, o senhor Rodrigues que já se reformou, estava lá à venda. Fiquei seduzido pela personalidade do som. Acho que fiz um empréstimo bancário. Quanto custa? É muito variável, mas pode custar 20 mil euros, 30 mil, 50 mil, 100 mil. É quase como comprar uma casa. E o outro contrabaixo, o elétrico? O outro comprei-o a um baixista mas tive de desenhar e criar umas hastes para ter a sensação de estar a tocar um instrumento. É um instrumento muito magrinho.
“Ém Viena, tínhamos de estudar seis horas por dia, no mínimo. Tocava nos clubes, dormia duas horas por noite. Chegava a fazer 18 horas de música por dia” “Os músicos jovens chamam-me mestre, o que quer dizer que estou velho. Mas não me sinto velho, continuo a ser uma criança”