O Estado financiador
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A propósito do Congresso do CDS realizado no último fim de semana, voltou a manifestar-se, nas intervenções dos comentadores da direita liberal (ou pelo menos como tal autodesignada), a defesa da ideia de Estado financiador por oposição à de Estado prestador. Argumenta-se, pois, em favor de uma dupla redução do Estado. Por um lado, redução da sua capacidade por redução do volume dos impostos. Por outro, redução da sua ação por transferência para privados, com ou sem fins lucrativos, de boa parte das funções do Estado, acompanhada pela correspondente transferência de recursos públicos. Ou seja, ao Estado caberia o financiamento das prestações sociais, em particular no domínio dos serviços de educação e de saúde, de acordo com regras a estabelecer, mas não a prestação daqueles serviços.
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O Estado financiador, por oposição ao chamado Estado prestador, existe já em Portugal. Tanto em muitos dos serviços de apoio social como no domínio da educação pré-escolar, predomina no país o financiamento regulado de agentes privados, em regra sem fins lucrativos, sendo mínimo o papel do Estado como prestador desses serviços. Conviria, pois, avaliar este sistema de prestação do serviço público, para além das afirmações de princípio em defesa de um ou outro modelo.
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Independentemente da discussão sobre o custo relativo dos diferentes sistemas, para a qual seria bom ter mais avaliações do que as hoje disponíveis, há um limite claro na opção pelo Estado financiador. A história do sistema de educação pré-escolar ilustra bem esse limite. Depois de um crescimento inicial rápido e sustentado, em modalidade de financiamento e não de prestação, a taxa de cobertura do pré-escolar estagnou. Em 1994, estavam sem cobertura os territórios mais desfavorecidos do país. Ao contrário, no mesmo ano, o serviço público de educação básica prestado pelo Estado cobria todo o tipo de territórios em termos tendencialmente universais.
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A generalização da cobertura dos serviços públicos, quando estes são concessionados a privados, acaba pois por requerer uma intervenção supletiva do Estado, constituindo-se desta forma uma dualização daqueles serviços, com um subsistema privado para as classes médias e um sistema público para os mais pobres. Esvaziado da utilização das classes médias, o sistema público perde progressivamente voz e, consequentemente, entra com facilidade numa espiral de desqualificação sem contrapesos. Para evitar esta espiral, a existência de serviços públicos de qualidade para todos, em domínios necessariamente massificados, como a saúde ou a educação, requer o máximo de mistura social.
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Naqueles domínios, o Estado prestador deve ser a regra. É, no entanto, duvidoso que haja vantagem em confundir regra com exclusividade. Neste como em muitos outros domínios, o pluralismo das soluções é, em geral, preferível à exclusividade de uma solução específica. A pluralidade dos modos de prestação do serviço público permite introduzir uma tensão acessória no sistema necessária à sua melhoria contínua, desde que devidamente regulada, monitorizada e avaliada a ação de todos os prestadores do serviço.
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Há, porém, como atrás se referiu, uma linha de rutura que não pode ser ultrapassada sem pôr em causa o objetivo último de igualdade de todos os cidadãos no acesso a serviços públicos de qualidade: transformar o pluralismo em dualização. O que tem outra consequência. Não é possível sustentar a qualidade de serviços públicos como os de saúde e de educação sem preservar o princípio da universalidade. É a universalidade da sua cobertura que garante a permanência neste dos que, como atrás se referiu, têm mais voz para contrariar tendências à sua degradação por constrangimento financeiro. A justiça na relação entre contribuição para os serviços públicos e usufruto do seu funcionamento faz-se através da progressividade do sistema fiscal, não da dualização das prestações do Estado.
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Para finalizar, argumenta-se frequentemente que o Estado deve financiar mas não deve fazer porque os privados saberiam fazer melhor, como seria demonstrado com o funcionamento das empresas. O argumento é falacioso a vários títulos. O que pressiona no sentido da eficiência da gestão empresarial é a seleção pelo mercado. Essa seleção implica episódios recorrentes de falência e criação de organizações (as empresas) pouco consentâneos com a estabilidade requerida à prestação de serviços públicos. E, sobretudo, é uma seleção baseada exclusivamente num critério mercantil que recusa a consideração da utilidade social da atividade. Convinha não confundir a ética da responsabilidade financeira com a adoção de um critério mercantil na avaliação da ação pública.
O Estado prestador deve ser a regra. É, no entanto, duvidoso que haja vantagem em confundir regra com exclusividade