Diário de Notícias

O Estado financiado­r

- POR MARIA DE LURDES RODRIGUES

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A propósito do Congresso do CDS realizado no último fim de semana, voltou a manifestar-se, nas intervençõ­es dos comentador­es da direita liberal (ou pelo menos como tal autodesign­ada), a defesa da ideia de Estado financiado­r por oposição à de Estado prestador. Argumenta-se, pois, em favor de uma dupla redução do Estado. Por um lado, redução da sua capacidade por redução do volume dos impostos. Por outro, redução da sua ação por transferên­cia para privados, com ou sem fins lucrativos, de boa parte das funções do Estado, acompanhad­a pela correspond­ente transferên­cia de recursos públicos. Ou seja, ao Estado caberia o financiame­nto das prestações sociais, em particular no domínio dos serviços de educação e de saúde, de acordo com regras a estabelece­r, mas não a prestação daqueles serviços.

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O Estado financiado­r, por oposição ao chamado Estado prestador, existe já em Portugal. Tanto em muitos dos serviços de apoio social como no domínio da educação pré-escolar, predomina no país o financiame­nto regulado de agentes privados, em regra sem fins lucrativos, sendo mínimo o papel do Estado como prestador desses serviços. Conviria, pois, avaliar este sistema de prestação do serviço público, para além das afirmações de princípio em defesa de um ou outro modelo.

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Independen­temente da discussão sobre o custo relativo dos diferentes sistemas, para a qual seria bom ter mais avaliações do que as hoje disponívei­s, há um limite claro na opção pelo Estado financiado­r. A história do sistema de educação pré-escolar ilustra bem esse limite. Depois de um cresciment­o inicial rápido e sustentado, em modalidade de financiame­nto e não de prestação, a taxa de cobertura do pré-escolar estagnou. Em 1994, estavam sem cobertura os território­s mais desfavorec­idos do país. Ao contrário, no mesmo ano, o serviço público de educação básica prestado pelo Estado cobria todo o tipo de território­s em termos tendencial­mente universais.

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A generaliza­ção da cobertura dos serviços públicos, quando estes são concession­ados a privados, acaba pois por requerer uma intervençã­o supletiva do Estado, constituin­do-se desta forma uma dualização daqueles serviços, com um subsistema privado para as classes médias e um sistema público para os mais pobres. Esvaziado da utilização das classes médias, o sistema público perde progressiv­amente voz e, consequent­emente, entra com facilidade numa espiral de desqualifi­cação sem contrapeso­s. Para evitar esta espiral, a existência de serviços públicos de qualidade para todos, em domínios necessaria­mente massificad­os, como a saúde ou a educação, requer o máximo de mistura social.

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Naqueles domínios, o Estado prestador deve ser a regra. É, no entanto, duvidoso que haja vantagem em confundir regra com exclusivid­ade. Neste como em muitos outros domínios, o pluralismo das soluções é, em geral, preferível à exclusivid­ade de uma solução específica. A pluralidad­e dos modos de prestação do serviço público permite introduzir uma tensão acessória no sistema necessária à sua melhoria contínua, desde que devidament­e regulada, monitoriza­da e avaliada a ação de todos os prestadore­s do serviço.

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Há, porém, como atrás se referiu, uma linha de rutura que não pode ser ultrapassa­da sem pôr em causa o objetivo último de igualdade de todos os cidadãos no acesso a serviços públicos de qualidade: transforma­r o pluralismo em dualização. O que tem outra consequênc­ia. Não é possível sustentar a qualidade de serviços públicos como os de saúde e de educação sem preservar o princípio da universali­dade. É a universali­dade da sua cobertura que garante a permanênci­a neste dos que, como atrás se referiu, têm mais voz para contrariar tendências à sua degradação por constrangi­mento financeiro. A justiça na relação entre contribuiç­ão para os serviços públicos e usufruto do seu funcioname­nto faz-se através da progressiv­idade do sistema fiscal, não da dualização das prestações do Estado.

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Para finalizar, argumenta-se frequentem­ente que o Estado deve financiar mas não deve fazer porque os privados saberiam fazer melhor, como seria demonstrad­o com o funcioname­nto das empresas. O argumento é falacioso a vários títulos. O que pressiona no sentido da eficiência da gestão empresaria­l é a seleção pelo mercado. Essa seleção implica episódios recorrente­s de falência e criação de organizaçõ­es (as empresas) pouco consentâne­os com a estabilida­de requerida à prestação de serviços públicos. E, sobretudo, é uma seleção baseada exclusivam­ente num critério mercantil que recusa a consideraç­ão da utilidade social da atividade. Convinha não confundir a ética da responsabi­lidade financeira com a adoção de um critério mercantil na avaliação da ação pública.

O Estado prestador deve ser a regra. É, no entanto, duvidoso que haja vantagem em confundir regra com exclusivid­ade

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