Entre a União e os arquipélagos
Na primavera de 2014, num longo ensaio sobre a “queda da Europa”, arrisquei um diagnóstico para a patologia que já estava a minar a União Europeia: uma “doença autoimune”. As eleições para o Parlamento Europeu de maio de 2014 marcaram uma viragem ascensional para as forças populistas, nacionalistas e antidemocráticas. Nestes quatro anos tudo ficou pior. Continuando na metafórica médica: se então a febre europeia se agravava pela austeridade inflexível de um Schäuble e de outros “médicos” medíocres e sem visão, hoje a Europa trocou os cuidados da medicina em geral pela manipulação dos feiticeiros populistas e dos curandeiros extremistas. Gente que tem tanto de atrevimento como de ignorância. Atacam a UE, cuja estrutura e complexidade nunca se deram sequer ao trabalho de estudar, não para a reformar, mas para a destruir. A doença autoimune implica, como é óbvio, que também eles serão arrastados na derrocada que estão a caminho de provocar. O que não é aceitável é o sofrimento que atingirá centenas de milhões de europeus, cuja única culpa é a distração face ao que se passa à sua volta.
A UE faz hoje lembrar o “monstro de muitas cabeças”, com que Thomas Hobbes simbolizava a dilaceração da Inglaterra nos anos da guerra civil em meados do século XVII. Lentamente, a UE vai-se fragmentando, dando origem à criação de arquipélagos. O primeiro a consolidar-se chama-se Grupo de Visegrado: Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia (o único país da eurozona). Neste arquipélago a democracia liberal e os tão repetidos “valores europeus” já não são válidos. Não há separação de poderes nem liberdade de imprensa. O mais vil racismo instalou-se, paradoxalmente, debaixo de uma retórica de fundamentalismo cristão. Putin conta com estes países para uma futura zona de influência. Mais recentemente, ergueu-se um novo arquipélago, liderado pelo governo holandês de Mark Rutte, cujo lema consiste em afastar os populistas, seguindo o seu programa político... Essa “Nova Liga Hanseática”, como começa a ser designada, inclui a Irlanda, Finlândia, Estónia, Lituânia e Letónia. Fora do euro entram a Suécia e a Dinamarca. Há escassos dias, este grupo unificou-se em torno das críticas dos seus ministros das Finanças, alvejando as modestas propostas de reforma da união monetária de E. Macron. Tratou-se de um ataque preventivo, lançado antes mesmo de o novo governo alemão ter tomado posse e sem que se saiba qual o teor de um eventual entendimento franco-germânico.
Em 1992, seis dezenas de economistas alemães avisaram, com um manifesto de sentido profético, que uma união monetária sem união política europeia constituiria “um perigo para a Europa”. A união monetária do euro impôs uma ordem política, implícita e furtiva, que foi favorável para parte do capital, mas penosa para a maioria do trabalho, ferindo a igualdade social e a confiança na cidadania. A UE, como a conhecemos, está agonizante. Contudo, pensar que uma integração europeia defeituosa se corrige com uma desintegração nacionalista é uma ilusão grosseiramente perigosa. A magra esperança que nos resta, dadas as circunstâncias adversas, consiste em perceber que a integração económica e social deve caminhar em uníssono com mais e melhor democracia, tanto na Europa como nos Estados nacionais. A alternativa à refundação do projeto europeu de paz e prosperidade, sob o primado da justiça e da solidariedade, será a longa agonia duma Europa arquipelágica, devorada pelo regresso dos velhos demónios tribais.