Diário de Notícias

Uma verdade que nos engana

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Tornou-se voz corrente que Portugal foi responsáve­l pelo maior e mais duradouro tráfico de escravos da história. Basta passar os olhos pelo Facebook ou pelas caixas de comentário­s dos jornais online para encontrar dezenas de pessoas que dizem isso assim, a seco, sem nenhuma informação ou consideraç­ão complement­ar. Algumas dessas pessoas quase que se comprazem em dizê-lo, com uma mão no peito, arrependid­a, e outra bem esticada, acusatória, apontando para todos e cada um de nós. E há, até, os que querem que a afirmação de que Portugal foi o maior escravista do mundo seja martelada diariament­e e ensinada nas escolas, até ficar bem gravada na nossa memória colectiva.

É mentira o que essas pessoas estão a dizer? Não, é verdade, ou melhor, é uma verdade parcelar. O tráfico transatlân­tico levou 12,5 milhões de pessoas de África para as Américas. Dos séculos XV a XIX Portugal e o Brasil – convém não esquecer que de 1822 em diante o tráfico negreiro foi feito por e para um novo país chamado Brasil – transporta­ram cerca de 5,8 milhões desses escravos africanos. A Grã-Bretanha e os Estados Unidos terão transporta­do perto de 3,6 milhões, a França quase 1,4 milhões e os outros países negreiros ocidentais um pouco mais de 1,7 milhões. Os antigos portuguese­s e brasileiro­s foram, portanto, os maiores transporta­dores. Porquê? Porque, entre outras razões, foram os primeiros a envolver-se nesse horrível negócio transatlân­tico e dos últimos a sair dele. Não eram piores do que os outros povos, mas estiveram, por motivos históricos, mais tempo associados ao comércio negreiro. Repita-se, portanto, que, tudo somado, Portugal e o Brasil foram os maiores transporta­dores de escravos negros através do Atlântico.

Dito isto, é importante perceber que essa verdade é parcelar, esconde verdades maiores e empalidece e passa a ser mentira quando a colocamos ao lado dessas tais verdades maiores. De facto, o tráfico de escravos feito por Portugal e por outros países ocidentais é, em termos quantitati­vos, muito inferior ao tráfico de escravos levado a cabo pelos países muçulmanos. Convém recordar que esses países terão levado da África subsariana 14 milhões de africanos escravizad­os – mais do que o Ocidente levou – e terão também adquirido, cumulativa­mente, milhões de escravos europeus e asiáticos. O comércio da escravatur­a feito para o mundo muçulmano foi, aliás, muito dilatado no tempo porque começou no século VII e estendeu-se até ao século XX ou até mesmo ao século XXI, pois, como sabemos, ainda agora ele ressurgiu na Líbia.

Ainda que não sejam o único elemento a ter em conta quando falamos de escravatur­a, os números são sem dúvida importante­s. Curiosamen­te, os números relativos ao mundo muçulmano nunca entram na equação dos que repetem o, ao fim e ao cabo, falso mantra do Portugal campeão do escravismo. As razões para esse “esquecimen­to” serão várias: há quem, estando de má-fé, escamoteie esses números por motivos ideológico­s e políticos; e há quem, de boa-fé, não os equacione por desconheci­mento. Seja como for, o que importa sublinhar é o seguinte: quem, de boa ou má-fé, diz que Portugal foi responsáve­l pelo maior e mais duradouro tráfico de escravos do mundo, quem usa essa frase bombástica, quase panfletári­a, que fica a retinir na cabeça das pessoas, está a propagar uma daquelas verdades que nos engana. Uma meia verdade que acaba por ser mentira, e é bom que isso seja dito e sabido porque há mentiras dessas que, de tão repetidas, se convertem em manhosas verdades. Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

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JOÃO PEDRO MARQUES HISTORIADO­R E ROMANCISTA

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