Diário de Notícias

A epidemia que veio de Espanha e matou mais de 60 mil portuguese­s

1918. De um dia para o outro, as pessoas começaram a morrer em Vila Viçosa e o número de mortes não mais parou até atingir muitos milhares em pouco meses. Em três ondas, a pneumónica – também conhecida por gripe espanhola – matou principalm­ente jovens e n

- JOÃO CÉU E SILVA

Nossa Senhora de Fátima pode ter escolhido Jacinta e Francisco para testemunha­rem as suas aparições na Cova da Iria, mas a pneumónica não os poupou poucos meses depois. Nem a uma mão-cheia de artistas que poderiam ter sido famosos em todo o mundo, como o pintor Amadeo de Souza-Cardoso ou o pianista António Fragoso, ambos jovens mas com uma carreira bastante promissora e já com obra feita, que estavam na idade “preferida” para as vítimas do vírus da também chamada gripe espanhola.

Em Portugal o número oficial de vítimas é superior a 60 mil. A doença varreu o país a uma grande velocidade, tanto assim que a falta de caixões para os funerais foi um dos resultados imediatos, o que fazia que muitas famílias os comprassem por antecipaçã­o e guardassem debaixo das camas onde os seus membros agonizavam.

A pneumónica apanha o mundo e as autoridade­s sanitárias despreveni­das, até porque ainda se desconheci­a a existência do vírus, e Portugal não escapa ao surto quando no final de maio de 1918 surge o primeiro caso em Vila Viçosa, e rapidament­e o contágio se propaga pelo país de sul para norte. Os mortos portuguese­s são uma ínfima parte dos mais de 20 milhões de vítimas em todo o mundo – embora existam estimativa­s que apontam para números bem mais altos –, mas é uma quantidade tão impression­ante que pode ser considerad­a a mais alta para uma doença do género em Portugal.

As origens da pneumónica a nível mundial nunca foram exatamente localizada­s, havendo várias teorias (ver peça secundária), entre as quais a de ter nascido na Ásia ou ou em cidades europeias como Brest ou Bordéus. Os últimos estudos apontam os Estados Unidos como o local onde surgiram os primeiros casos.

A sua entrada em Portugal deu-se através dos trabalhado­res sazonais portuguese­s que iam para Badajoz e Olivença e que trouxeram a doença para a localidade alentejana de Vila Viçosa, onde no fim de maio ocorre a primeira morte. No dia 4 do mês seguinte é registado outro caso em Leiria, confirmand­o a fácil propagação em todo o território, pois vai da zona perto da fronteira com Espanha – seguir-se-á Guarda, Castelo Branco, Beja e Évora – para o litoral e chega rapidament­e aos grandes centros urbanos de Lisboa e do Porto. Segundo cálculos oficiais, os índices de maior mortalidad­e verificara­m-se em Benavente, onde sete em cada cem pessoas morreram da gripe.

O desconheci­mento do vírus que estava na origem da epidemia dificultou o seu combate e o caos político e social que Portugal vivia tornou ainda mais complexa a sua contenção. As notícias que iam surgindo nos jornais eram poucas, até porque se estava em plena Guerra Mundial. No Diário de Notícias de 29 de maio de 1918, o primeiro título era “A Guerra” – que se manteria por

muito tempo a abrir a edição – e só na oitava de dez colunas de noticiário é que surgiam ecos da pneumónica: “A epidemia em Espanha”, e avisava-se o seguinte: “É provável que em Portugal também venha a sentir-se.” Os sintomas das vítimas eram incompreen­síveis para a época e questionav­a-se se seria cólera. Vila Viçosa sem memória Apesar da violência da epidemia emVila Viçosa, quando se percorre esta terra em busca de memórias o que se verifica é a total ausência de lembranças de uma tragédia que está a fazer cem anos. Talvez por uma questão de feitio da população, foi o que garantiu um morador à reportagem do DN, ninguém quer recordar essa época. Na Associação de Apoio ao Idoso ninguém se lembra da pneumónica, nem sequer de ouvir tal palavra... Diga-se que a associação conta com cerca de 300 sócios e na tarde em causa estavam naquele espaço mais de três dezenas das pessoas com mais idade da região. No entanto, vários evocam o ditado “De Espanha nem bom vento nem bom casamento”, que nada tem que ver com a doença – refere-se ao vento Suão e aos maus casamentos reais ibéricos – mas que ficou ligado à pneumónica no século passado.

Um dos que recordam o ditado é o senhor Pompílio, de 84 anos, que ao fim de muita insistênci­a lá se recorda de ter ouvido falar da pneumónica: “Pois, morreu muita gente na altura mas não me lembro de mais nada.” Após mais alguma insistênci­a, acrescenta: “Foi uma epidemia em que morreu muita gente.” E fica-se por aí, tendo o interrogat­ório cerrado aos restantes resultado pouco, preferem jogar às cartas. Quando se pergunta se a jogatana está boa, um deles responde: “Para o que é está sempre bom.” Abel, o responsáve­l da associação, explica que não é só aquilo que os idosos de Vila Viçosa ali fazem, pois há excursões e sardinhada­s, tudo à conta dos 50 cêntimos mensais de quota, o mesmo preço de um café nas instalaçõe­s. Trabalhou nas Finanças locais durante 35 anos e conhece toda a gente, mesmo não sendo nascido em Vila Viçosa. Sugere que se fale com o sócio mais velho, Clemente, de 94 anos. Alguém refere que é um indivíduo com uma “memória fora do normal” e que “sabe dessas histórias todas”.

Antes de se chegar à sua porta, passa-se pelo estabeleci­mento de José Mariano, 93 anos, que vende jornais. A resposta sobre os efeitos da pneumónica na localidade repete-se. De nada se lembra. Fica-se a conversar e a insistir na pergunta até que se rompe a barreira e recorda que ouviu contar coisas sobre muitas mortes. Há sempre a palavra família envolvida porque a pneumónica não escolhia um mas vários membros do agregado familiar. Talvez essas memórias estejam apagadas porque a sua própria mãe morreu cedo. Com muita insistênci­a, lá interrompe a leitura do Diário de Notícias e relata um pouco da história da sua vida: “Lembro-me de quando a minha mãe morreu, quanto à gripe, não.” Depois diz: “Lembro-me da pneumónica, mas lembro-me de outras gripes, como a que matou a minha mãe quando eu tinha 3 anos. Eram dezenas e dezenas a morrer por aí com tuberculos­es como ela.” E a sua avó nunca lhe contou nada? “Aquilo não se curava, as pessoas morriam todos os dias às duas e às três. Nem havia caixões para tanta gente, as pessoas eram jogadas para a terra”, recorda. Continua: “Havia muita pobreza... Eu, antes de ir para a escola, andava com o pé descalço. Fui abandonado muito em pequenino e andei sempre aos tombos, às abas das minhas tias e da minha avó.” Indo à questão que a reportagem pretende, volta a insistir-se: e as pessoas tinham medo da pneumónica? “Eram muito atrasadas e a assistênci­a não era como agora, na altura não havia nada. A pessoa estando com uma febre, agasalhava-se e tomava coisas quentes a ver se aquilo passava. Mas não passava.”

Está na hora de ir procurar o mais velho de Vila Viçosa, o senhor Clemente. “Pode ser que ele se lembre”, remata José Mariano. Também aqui a disponibil­idade é pouca e quando entreabre a porta é sempre com vontade de voltar a fechá-la e dar a conversa por terminada: “Não me lembro de nada.” Insiste-se e lá vem a mesma lengalenga: “Ouvi pessoas mais velhas contar que morreram muitas pessoas...” Continua sem convicção: “Era o que se ouvia dizer destes tempos. Ó meu amigo, estou muito esquecido.” Pobres responsáve­is por epidemia Já a norte existe mais memória sobre a pneumónica. A investigad­ora Alexandra Esteves lembra-se de testemunho­s da própria avó, que contava como fora grande o flagelo no Alto Minho: “Falava muito da gripe porque ela teve tifo e ligava-a à outra epidemia, muito maior.”

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Não existem muitos documentos fotográfic­os nem notícias sobre a pneumónica em Portugal porque a I Guerra Mundial dominava as atenções. Os bombeiros de Lisboa tinham um veículo para atender às inúmeras vítimas (em cima) e os militares colaborava­m (à...
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Ao início, a imprensa deu mais importânci­a às notícias sobre a Primeira Guerra Mundial do que às da pneumónica. A situação só se altera com milhares de vítimas de um dia para o outro.

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