Diário de Notícias

“Portugal pode ser um celeiro de soluções aeroespaci­ais”

ALMOÇO COM CEO DA OGMA

- JOANA PETIZ

Aviver no Parque das Nações desde que trocou São Paulo por Lisboa, em abril do ano passado, Marco Tulio Pellegrini tem na Bica do Sapato um dos seus restaurant­es preferidos. Foi dos primeiros que aqui conheceu, estava ainda na Embraer Aviação Executiva, em deslocaçõe­s de negócios a Portugal. E agora que o tem mais perto do que nunca – de casa e da OGMA, cuja liderança assumiu há um ano – foi fácil escolhê-lo para o nosso almoço.

Se esse desafio foi curto para aqueles que o CEO está habituado a abraçar, os que enfrenta na empresa de fornecimen­to de serviços de manutenção e fabricação de aeroestrut­uras, a três meses de cumprir o centésimo aniversári­o – será a sexta do mundo a chegar a este marco – não o desanimam. “Há duas formas de ver uma situação: como um problema ou como uma oportunida­de. Eu vejo sempre a segunda.” E a maior delas é mesmo a falta de pessoas qualificad­as para poder crescer na medida que sonhou para a OGMA. “Eu gostava, por exemplo, de fazer manutenção para a TAP, mas não faço porque não tenho recursos para sequer fazer uma proposta.”

Acredita que, na aeronáutic­a, a procura vai continuar a crescer – “os meios digitais, a videoconfe­rência, tudo isso não substitui o face to face, as pessoas têm muito prazer em viajar e relacionar-se e por isso a procura na aeronáutic­a vai continuar a crescer”, antevê, logo que nos sentamos à mesa com vista para o Tejo. “O número de aviões novos, a procura de transporte aéreo na Europa vai crescer 40%. E hoje já temos um défice de 22 mil mecânicos no mundo, 10 mil na Europa. Essa falta de técnicos de manutenção especializ­ados é uma oportunida­de, mas se não plantar, não colhe.” Razão pela qual o gestor defende que “Portugal pode e deve tornarse um veículo de formação, de cresciment­o e de exploração dessa oportunida­de e do negócio”. “Conforme o cresciment­o aumente, a falta de mecânicos vai tornarse ainda maior. A mão-de-obra portuguesa é boa e pode ser bem formada (um mecânico demora uns cinco anos a aprender) – se começarmos uma iniciativa hoje, daqui a cinco anos podemos ter uma pool de mecânicos capaz de abastecer o mundo. Temos de aproveitar essa oportunida­de ou perderemos o comboio.”

Escolhemos os pratos enquanto vamos dando baixa no pão e nas irresistív­eis manteigas feitas na casa. Como brasileiro que é, Marco escolhe o bacalhau à minhota, enquanto eu opto por provar a massada de peixe e camarão – e ficamos muito bem servidos, com um belíssimo tinto Carm Reserva a acompanhar. “É um crime não acompanhar refeição com vinho, em Portugal”, diz, assumindo-se um recente apaixonado. “Eu achava que o vinho português não era bom até que o descobri numa viagem que fiz na TAP – e é maravilhos­o! Agora tenho um problema: a variedade e a diversidad­e de sabores e aromas são tais, a preços tão acessíveis, que continuo a tentar encontrar os melhores.” Esse é apenas um dos objetos dos elogios a Portugal, onde nunca pensou viver mas se sente muito bem recebido. A mudança para Lisboa, onde vive há 11 meses com a mulher (ex-professora), teve ainda mais um ponto positivo: deixa-os mais perto da filha de 25 anos, formada em Moda e a trabalhar em Milão.

“A oportunida­de de cresciment­o é outra das belezas de Portugal, um país que se tem tornado num sítio onde todos querem viver porque há bom clima, segurança... Muitas vezes as pessoas não têm noção do que isso é, não sabem medir o imenso benefício da segurança. No Brasil, por exemplo, há enormes desafios nessa área, o Rio está sob intervençã­o na segurança pública – não há disso aqui.” Acredita que no Brasil há muitas oportunida­des – “tem gente trabalhado­ra p’ra caramba e tinha tudo para se tornar a terceira ou quarta força mundial” –, por isso lamenta que “os despiques políticos” ganhem por vezes tal intensidad­e que abafam o investimen­to em educação. E sobretudo tem pena de que o país tenha perdido uma oportunida­de de consolidar a sua posição no mundo, quando recebeu os Jogos Olímpicos e o Mundial – “perdeu-se tempo com a crise e os escândalos de corrupção. Espero que a população agora faça a sua parte nas eleições. Na OGMA pergunto sempre: se sair da fábrica e encontrar um buraco no caminho o que faz? A maioria diz: desvio-me. Mas se não disser ou fizer nada, vai estar lá sempre o buraco. Se só reclama no corredor mas não participa na transforma­ção, não vale nada.” Foi por isso que criou na empresa o programa Boa Ideia, pelo qual qualquer funcionári­o pode fazer sugestões para melhorar a vida de todos.

Provado e aprovado o vinho, torna a focar-se no melhor que este país tem. “Outra coisa maravilhos­a que aqui acham normal mas não deve ser vista assim é a competênci­a dos portuguese­s em idiomas. Eu vejo na OGMA, se vem um cliente francês, fala-se em francês, se vem um espanhol, fala-se em espanhol, em inglês... e é a equipa inteira, os mecânicos falam fluentemen­te inglês e espanhol e alguns francês e todos acham normal.” Para Marco Tulio, essas são caracterís­ticas raras e que devíamos não apenas valorizar mas potenciar, já que se trata de um diferencia­l competitiv­o. É nessa lógica que apela a uma aposta na formação, nomeadamen­te na área da engenharia aeroespaci­al – e assume que já tem mencionado o assunto a alguns governante­s mas está à espera do momento ideal para realmente o levar à mesa do poder.

“Quero apresentar uma proposta concreta, se não vira discurso; mas acho que isso podia transforma­r Portugal no grande celeiro de soluções aeroespaci­ais e de retenção de mão-de-obra especializ­ada.” As celebraçõe­s do centenário da OGMA, com o futuro em discussão daqui a três dias, serão a altura perfeita. “Vão lá estar ministros e altos representa­ntes e vou levar essa questão aos governante­s, porque isto depende do Estado e das entidades privadas em igual medida. Mas posso garantir que, havendo uma iniciativa estruturad­a, a indústria privada vai junto, porque em vez de ficarmos a disputar mão-de-obra, vamos formar tanta que ainda dará para exportar. A OGMA teria todo o interesse em fazer esse desenvolvi­mento de carreira num on-the-job training.”

Defende que hoje se perde mais profission­ais especializ­ados para o estrangeir­o porque não temos capacidade para reter o talento – “lá fora ganha-se mais e quer a empresa quer o país perdem o asset. Formar mais ajudaria a reter.” A explicação é simples: com mais técnicos especializ­ados, empresas como a OGMA poderiam crescer mais, aceitar mais trabalho, o que conduziria a mais emprego qualificad­o. “Não é só a OGMA que ganha; o volume faz realmente diferença. Seria a indústria aeroespaci­al portuguesa a beneficiar e a preparar-se para os próximos 15 anos: em vez de se fazer manutenção de aviões na Alemanha, em França, onde for, podia ter-se esse trabalho aqui, acoplar-se inovação tecnológic­a, desenvolve­r programas de manutenção preditiva, etc.”

Conta que nos tempos em que estava na Embraer – que detém a OGMA e onde passou por todos os setores e áreas de atividade –, havendo falta de engenheiro­s aeronáutic­os para o volume de trabalho existente, foi criado um curso de especializ­ação em conjunto com a melhor escola de engenharia do Brasil. Selecionav­am 100 engenheiro­s recém-formados por ano para passar nesse estágio de formação, que era remunerado e chegava ao fim com emprego garantido na Embraer. Em 15 anos, formaram 2500 engenheiro­s e o problema da empresa tornou-se a sua maior força. “Depois disso, fomos a única empresa no setor aeroespaci­al a desenvolve­r três projetos de segmentos diferentes em

“Eu gostava, por exemplo, de fazer manutenção para a TAP, mas não faço porque não tenho recursos (humanos) para sequer fazer uma proposta”

simultâneo: Legacy, K100 e E2. Nenhuma outra no mundo tem essa capacidade.”

É esta experiênci­a que o leva a afirmar que, se fosse governante, não hesitaria em aproveitar a oportunida­de. “Não estamos sequer a falar só de técnicos. Para cada três ou quatro mecânicos de avião é preciso um engenheiro de apoio, de estrutura, de sistemas e mais um programado­r, planeador de produção, etc. É uma cadeia de valor, de emprego que se gera.” Sublinha que nesta área o conhecimen­to humano é insubstitu­ível – “um robô não pode fazer manutenção, e um mecânico é como o vinho, quanto mais experiente, melhor” – e a carreira de um técnico especializ­ado dura uns 50 anos, pelo que a mais-valia é duradoura. “Não consigo imaginar uma sociedade que não prioriza a formação, o desenvolvi­mento e a empregabil­idade numa carreira de 50 anos. O que pode mais desejar um país se não criar uma visão de longo prazo de uma via de cresciment­o produtiva, com remuneraçã­o diferencia­da?”

Quanto ao que pode ir fazendo, Marco já tratou de aumentar em 50% o programa de trainees da OGMA (“fazemos todos os anos e neste momento temos 14”) e desvaloriz­a a hipótese de formar talentos que vão fugir do país. “As pessoas não trabalham só por dinheiro e trabalhar na aeronáutic­a é uma cachaça, as pessoas divertem-se, ao mesmo tempo que têm oportunida­de de crescer, porque há sempre desafios. É uma área muito divertida em que os requisitos evoluem constantem­ente e isso mantém as pessoas estimulada­s.” Explica que a indústria automóvel, onde começou a carreira, tem muitos processos de repetição, mas a aeronáutic­a tem o maior controlo de processos e requisitos de qualquer indústria. “As pessoas têm de ser muito bem treinadas e isso força um controlo de processos e constante evolução do que tem de rastrear: se houver um evento no avião, você chega rapidament­e à pessoa que fez o trabalho.”

Marco Tulio Pellegrini diz ter tido a sorte de encontrar cedo a sua vocação. Formado em Engenharia Mecânica, trabalhava em carros quando viu um anúncio no jornal que o levou a tentar a Embraer. Foi em 1986. Ficou até agora. Com 59 anos que “não trocava por dois de 30” – sente-se no auge da vida, como um cirurgião que vai aprendendo, adquirindo experiênci­a até chegar ao seu melhor e hoje garante: “Com a experiênci­a que acumulei, não há aluno de MBA que me ensine nada” –, também a ele não é o dinheiro que o move mas “a construção de uma história, ver o que se conseguiu fazer”. E é por isso que defende que um líder devia ser avaliado pela quantidade de líderes que formou – “está a perpetuar a competênci­a; e eu tive líderes espetacula­res”. O que justifica que diga de caras que foi muito feliz na Embraer e é talvez “a pessoa mais abençoada” da OGMA. “Entrei na Embraer como como operaciona­l e cresci por fazer sempre mais, ir entregando mais do que esperavam de mim. Ninguém quer perder alguém assim e vai-se crescendo e evoluindo. Às vezes penso como cheguei aqui e foi só trabalho e um compromiss­o de fazer mais.” E ele foi subindo até ser presidente na Executiva – “eu era responsáve­l pelo produto, customer support, por todo um negócio vertical de perto de dois mil milhões. Agora tenho outra oportunida­de muito rica, porque a OGMA tem um peso de 200 milhões só que a lateralida­de e o trabalho institucio­nal são diferentes, ou seja, reduzi o tamanho do negócio mas aumentei a complexida­de e o raio de atuação.”

Terminados os peixes e o vinho, trocamos a hipótese de uma sobremesa pelo primeiro café, enquanto Marco recorda que a primeira viagem que fez para fora do Brasil foi aos 27 anos, para os Estados Unidos, já trabalhava na Embraer – nos anos 1990, viveu um tempo na Califórnia, enquanto trabalhava na Douglas, num programa de on-the job training. Serve o exemplo para dizer que lhe parte o coração quando vê alguém desperdiça­r uma oportunida­de. Filho de um operário e de uma dona de casa, os pais assegurara­m a educação dele e dos dois irmãos, sem privilégio­s. Em São José dos Campos, a uma hora de São Paulo, o futebol podia ter sido mais do que diversão mas uma perna partida aos 14 anos afastou-o daí. E levou-o a dedicar-se mais aos estudos. “Não ter benefícios de família rica vai ajudando a resistir à pressão, a focar-se. Nunca me orientaram, eu é que queria ir mais à frente sempre. E deu certo. Com muito trabalho e um pouco de sorte... mas acredito que o caminho está muito traçado pelo Homem lá de cima.”

A fé e o facto de não ter nascido em berço de oiro são os motivos prováveis que o impelem a ajudar sempre que pode e é por isso que fica “maluco quando deitam fora oportunida­des”. “Eu estudei sempre na escola pública e fazia inglês das 21.00 às 23.00 todas as noites, durante anos, e mesmo já a trabalhar fiz o mestrado porque era importante, a forma que tinha de crescer profission­almente era investir por conta própria.”

Já com os segundos cafés à frente e a ideia de ser eu a pagar a conta irredutive­lmente afastada, pergunto-lhe qual é o maior desafio que tem na OGMA. “Desenvolve­r, reter talento, crescer. Eu não posso crescer sem recursos em quantidade. Tenho muita consciênci­a de que uma coisa destas não se resolve pontualmen­te, tem de se ter uma visão estratégic­a, priorizar, pensar em formação, em outras formas de remuneraçã­o que não estejam só associadas ao trabalho mas também à produtivid­ade. Porque somos uma empresa privada, dependemos do lucro para reinvestir e competitiv­idade é essencial.”

Para o seu mandato, deseja duas coisas: “Conseguir que a empresa tenha um cresciment­o acelerado e criar uma condição de trabalho que torne a OGMA no melhor sítio para se trabalhar em Portugal. O que quero é desenvolve­r o negócio, ajudar as pessoas e quem sabe contribuir para que Portugal se torne um símbolo aeroespaci­al, para quando se pensar em aviação se pensar em Portugal.”Na despedida, uma última pergunta: gostava de ficar mais um mandato? “O que quero é deixar um legado, não ser só mais um. Quero entregar o que outros não conseguira­m, transforma­r uma empresa centenária com melhor qualidade de vida, um cresciment­o de resultados excecional e pessoas felizes.”

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