Diário de Notícias

Brasil vai pagar um milhão de dólares a índios xucuru

Justiça. Tribo ganhou ação em tribunal interameri­cano sobre disputa de território­s. Decisão abre precedente de proporções continenta­is

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA, São Paulo

A Corte Interameri­cana de Direitos Humanos (CIDH), órgão judicial autónomo com sede na Costa Rica, decidiu que o Estado brasileiro deve pagar um milhão de dólares (cerca de 820 mil euros) aos índios xucuru, do estado de Pernambuco, por desrespeit­o e morosidade na demarcação dos seus território­s. Mais do que a quantia, o que preocupa o Brasil, com uma população de 900 mil indígenas de 240 povos diferentes, e outros países latino-americanos com perfil idêntico, é o precedente que se abre.

“O nosso olhar para esta decisão é esse: vai ser positiva para a luta dos índios do Brasil e da América Latina mas estamos, por agora, a encarar a decisão com alegria e prudência”, disse ao DN o cacique Marcos Xucuru, líder dos 9000 xucuru que vivem em comunidade­s rurais no interior do estado de Pernambuco, no Nordeste brasileiro. “Estava agora numa reunião de lideranças na nossa aldeia a planear as estratégia­s a definir com os nossos advogados”, continuou o cacique, de 39 anos.

Para o advogado do Conselho Indigenist­a Missionári­o que acompanhou o caso, a decisão foi “histórica” por ter sido “a primeira, em matéria de direitos indígenas, em que o Estado brasileiro foi condenado”. Segundo Adelar Cupsinski, “isto vai refletir nos órgãos públicos e nos tribunais brasileiro­s para que passem a acolher as posições da CIDH”.

O cacique não sabe ao certo ainda como vai aplicar o dinheiro que o governo liderado por Michel Te- mer, ou pelo seu sucessor após as eleições de outubro, tem de pagar. “O dinheiro não é reparatóri­o, nem é nada, tendo em conta os irmãos mortos no processo. Os investimen­tos a fazer para reparar os danos ambientais são gigantesco­s. Vamos colocar o milhão de dólares num fundo, ainda não sabemos vinculado a que instituiçã­o, talvez à FUNAI – Fundação Nacional do Índio, entidade pública que protege a causa indigenist­a brasileira.”

Uma espera de 15 anos “Aguardávam­os esta decisão desde 2003, foram 15 anos de espera e de luta”, continuou Marcos Xucuru. “Têm sido tempos de muita violência e de crimes contra as nossas lideranças, enfrentand­o adversário­s poderosos, principalm­ente com a constituiç­ão da bancada ruralista na Câmara dos Deputados [a chamada Bancada do Boi], que escolheu os indígenas como inimigo.”

O violento processo de demarcação de terras teve início em 1989. No ano seguinte, argumentan­do lentidão no andamento do processo, os xucuru iniciaram ações de retomada de território de fazendeiro­s. Em 1992, um indígena foi assassinad­o. Em 1995, um advogado da FUNAI morreu em confrontos. Em 2001, mataram o cacique Chico Quelé. Pelo meio, haviam executado o cacique Xicão, pai de Marcos e seu antecessor na liderança da comunidade.

Xicão foi morto a tiro por ordem de um fazendeiro, José Cordeiro de Santana, que se viria a suicidar na prisão. As duas partes brigavam pelas questões de território agora julgadas na CIDH. “Ele foi morto a 20 de maio de 1998. E eu tornei-me cacique a 6 de janeiro de 2000, então com 21 anos. Embora já soubesse, desde os 10 anos, que ia suceder ao meu pai no cacicado”, lembra Marcos.

Marcos Xucuru passou infância e adolescênc­ia violentas na serra de Ororubá, onde se situam as 24 aldeias xucuru. “Vivi a infância quase toda na aldeia, passei pela cidade [Pesqueira, localidade de 70 mil habitantes mais próxima às aldeias xucuru], onde trabalhei e estudei, e estive dois anos em São Paulo antes de voltar para a minha missão em 1997, um ano antes de o meu pai ser assassinad­o e três antes de assumir a liderança.” Não foi fácil na altura porque era muito novo e tinha 9000 pessoas para gerir. Além disso, estive sempre a sofrer pressão do estado, por um lado, e perseguiçõ­es e atentados de fazendeiro­s, por outro”, diz.

No dia 7 de fevereiro de 2003, uma emboscada na estrada quase o matou. “Morreram dois irmãos nossos, de 22 e 24 anos, mas eu, graças a eles e aos encantados [antepassad­os que na cultura indígena assumem papel místico], sobrevivi. Na sequência, entramos com ação na CIDH e na Organizaçã­o dos Estados Americanos para que eu e a minha mãe tivéssemos direito a escolta policial.”

Após a histórica decisão da CIDH, o objetivo de Marcos Xuxuru é deixar um legado de paz aos filhos e netos. “Entretanto, já recuperámo­s 90% do território e agora esta decisão vai ajudar-nos a recuperar o que falta e encerrar a luta.”

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Marcos Xucuru e elementos da tribo celebram decisão da Corte Interameri­cana de Direitos Humanos

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