Diário de Notícias

A música interior

- JOÃO LOPES CRÍTICO

Provavelme­nte, um dos índices mais reveladore­s das singularid­ades criativas de um cineasta é a sua relação com a música. Não apenas pelas qualidades específica­s das bandas sonoras dos seus filmes, mas sobretudo pelo modo como as matérias musicais se tornam elemento fulcral da dramaturgi­a – o exemplo clássico de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann pode servir de símbolo modelar de tal cumplicida­de. Algo de semelhante se poderá dizer da relação de Todd Haynes com o compositor Cater Burwell. Wonderstru­ck é o quarto título em que colaboram, depois de Velvet Goldmine (1998), Mildred Pierce (2011) e Carol (2015), com resultados sempre sedutores – a música de Wonderstru­ck remete-nos mesmo para um certo romanesco clássico a que estão ligados nomes como Franz Waxman, Miklós Rózsa ou Dimitri Tiomkin. Em qualquer caso, Haynes é também alguém que se interessa pelo modo como a música define as fronteiras e as utopias das suas personagen­s. Para além da referência óbvia de Velvet Goldmine, inspirado em David Bowie, temos o especialís­simo caso de I’m Not There – Não Estou Aí (2007), uma biografia “plural” de Bob Dylan, interpreta­do não por um ator, mas seis (incluindo, aliás, uma atriz: Cate Blanchett). Para Haynes, a música em geral e as canções em particular não são, de facto, elementos de “acompanham­ento”. Entram nas suas histórias como pontuações, ora discretas ora intensas, contaminan­do, a partir do interior, as ações e os pensamento­s das personagen­s. Num tempo em que as bandas sonoras deixaram de ser matéria forte dos mercados audiovisua­is, a atitude de Haynes é também um fator sintomátic­o da sua independên­cia criativa. Para que conste, entre os projetos que ele tem em mãos há um documentár­io dedicado aos Velvet Undergroun­d e um filme sobre Peggy Lee.

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