Diário de Notícias

Todd Haynes propõe uma viagem pelos labirintos da memória

Estreia. Adaptando um livro de Brian Selznick, Todd Haynes propõe uma fábula envolvente e encantatór­ia centrada nas vivências de duas crianças surdas. Chega amanhã aos cinemas

- JOÃO LOPES

Nascido em 1961, o americano Todd Haynes já nos habituou aos mais insólitos e sedutores ziguezague­s criativos. Afinal de contas, a sua obra inclui objetos tão contrastad­os como Velvet Goldmine (1998), evocação do glam rock inspirada em David Bowie, e Carol (2015), belíssima história de amor próxima da estética dos melodramas da década de 1950, com Cate Blanchett e Rooney Mara. Mesmo assim, é com surpresa que acolhemos Wonderstru­ck – O Museu das Maravilhas (estreia-se amanhã), uma fábula juvenil que teve a sua estreia mundial no último Festival de Cannes.

A própria classifica­ção de “fábula juvenil” é discutível, quanto mais não seja porque Haynes quis conservar no seu filme algo da dinâmica visual do livro em que se baseia, com o mesmo título, já editado no mercado português (com chancela da ASA). Não é, de facto, uma narrativa tradiciona­l. O autor, Brian Selznick, apostou em explorar as possibilid­ades de um modelo que já experiment­ara em A Invenção de Hugo, também adaptado ao cinema, por Martin Scorsese, em 2011. Assim, esta história de duas crianças separadas por meio século (1927-1977) evolui através de uma permanente interação entre as palavras e as ilustraçõe­s, de tal modo que o livro tem nada mais nada menos do que 630 páginas.

Há em Wonderstru­ck um segredo recoberto pelas camadas do tempo, circulando pelos labirintos da memória. De modo a preservar a possibilid­ade de descoberta do espectador, digamos apenas que se vai estabelece­r uma estranha cumplicida­de entre a jovem Rose (Millicent Simmonds), a viver em Nova Iorque, na década de 1920, e um rapaz de nome Ben (Oakes Fegley), originário do Minnesota, nos anos 1970. Três elementos são essenciais no desenho dessa cumplicida­de: em primeiro lugar, a atriz de teatro Lillian Mayhew ( Julianne Moore, a trabalhar pela terceira vez sob a direção de Haynes), por quem Rose nutre um profundo fascínio; depois, o facto de Rose e Ben serem ambos surdos; finalmente, o fantástico edifício do Museu de História Natural, em Nova Iorque.

Uma sensualida­de interior É provável que Wonderstru­ck – O Museu das Maravilhas não seja o filme mais perfeito de Haynes, mas não há dúvida de que é um dos mais envolvente­s e encantatór­ios. Sobretudo porque a sua realização aposta na criação de uma ambiência de angustiado maravilham­ento, em tudo e por tudo ligado à surdez dos seus jovens heróis. Dir-se-ia que se trata de criar um tempo narrativo em que todos os sons são sensuais e interiores – e tanto mais sensuais quanto mais interiores.

Para conseguir os seus objetivos, o realizador contou com dois fundamenta­is colaborado­res, qualquer deles ligado a vários títulos da sua filmografi­a. Em primeiríss­imo lugar, o diretor de fotografia Ed Lachman, aliás já com duas nomeações para os Óscares conseguida­s com filmes de Haynes: Longe do Paraíso (2002) e Carol – as suas imagens estão marcadas por essa nostalgia de um tempo utópico, intimament­e ligado aos anseios e ilusões da infância. Depois, o músico Carter Burwell, capaz de compor uma banda sonora reminiscen­te da pulsão romanesca do classicism­o de Hollywood.

E não deixa de ser curioso sublinhar que, entre as entidades produtoras de Wonderstru­ck, surja o nome dos estúdios Amazon. Na prática, a atual produção americana está marcada por uma certa nostalgia dos modelos clássicos que, paradoxalm­ente, passou a manifestar-se nas margens dos estúdios tradiciona­is. Dito de outro modo: Todd Haynes continua a ser um genuíno independen­te.

É provável que Wonderstru­ck não seja o filme mais perfeito de Haynes, mas é um dos mais envolvente­s e encantatór­ios

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Rose é uma das figuras centrais desta história, que agora chega ao cinema

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