Diário de Notícias

O regresso de “Viva la muerte!”

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Oque existe hoje de comum entre os EUA, a Índia, a Turquia, as Filipinas, a Rússia, a China ou o Brasil? São governados por homens que, em doses diversas, banalizam no discurso e na prática o uso da violência como instrument­o de afirmação do poder, que exaltam a valia de sociedades cultural, religiosa, moral e etnicament­e homogéneas, que querem construir muros entre as raças e as classes sociais, que entendem a democracia como a ditadura da maioria numérica, de que eles são os únicos e definitivo­s intérprete­s. Em doses diversas, esses chefes incomodam-se com os limites constituci­onais para a duração dos seus mandatos, que se aprestam a abolir do mesmo modo que transforma­m rapidament­e os tribunais e a imprensa em correias de transmissã­o obedientes da sua vontade. Este pano de fundo é importante para perceber a razão que me leva a não considerar o recente assassínio da vereadora carioca Marielle Franco, 38 anos, como apenas mais um doloroso incidente na tragédia da criminalid­ade que devora há muito a vida quotidiana no Brasil. Há aqui algo de mais amplo, de “universal-concreto” –, para usar um conceito com que o filósofo Hegel significav­a a sua tese de que o universal não mora no céu das ideias, mas vive na realidade de carne e osso da vida real. Atrevo-me a considerar que o assassínio de Marielle Franco partilha dessa substância transversa­l, própria dos acontecime­ntos que não se esgotam no tempo e no espaço em que ocorrem.

Sabemos hoje que um aparente incidente menor, ocorrido em 12 de outubro de 1936, opondo o venerando reitor da Universida­de de Salamanca, Miguel de Unamuno (1864-1936), contra um fanático militar franquista, José Millán-Astray (1879-1954), tornar-se-ia uma espécie de simbólico prefácio à matança generaliza­da que só terminaria em 1945, 60 milhões de vítimas depois, com a rendição da Alemanha e do Japão. Erguendo-se contra o arruaceiro seguidor de Franco, que proclamou: “Morra a inteligênc­ia!Viva a Morte!”, o sábio Unamuno, mesmo perturbado pela pateada da claque falangista presente na universida­de, terá dito: “Vencereis porque tendes força bruta em excesso, mas não convencere­is, pois convencer significa persuadir.” Marielle Franco representa tudo aquilo que os novos autocratas odeiam. Ela rompeu com o destino miserável que lhe foi imposto pela lotaria do nascimento. Uma mulher, negra, nascida na favela, bissexual, que pela tenacidade, coragem moral e talento intelectua­l franqueia as portas férreas da esfera pública. Uma mulher que se transforma em fonte de inspiração para os mais pobres e marginaliz­ados, uma mulher que é a prova viva de que, apesar de todos os seus erros, a governação de Lula da Silva fez toda a diferença em matéria de esperança social na longa história da desigualda­de brasileira. Esta mulher estava destinada a ser o alvo do ódio mortal dos novos seguidores de Millán-Astray.

No planeta em que vivemos, os problemas e as esperanças são cada vez mais globais, digitais e complexas. Das alterações climáticas à economia, à segurança humana em sentido amplo. Para sobreviver, a humanidade terá de trabalhar em conjunto, está obrigada à cooperação compulsóri­a. Contudo, o novo diretório que manda no mundo, um diretório onde a cadeira europeia está escandalos­amente vazia, é dominado por gente incapaz de sair das fronteiras estreitas da ignorância tribal, analógica e simplifica­dora. O mundo aspira pela inteligênc­ia da inclusão. Quem nele desmanda, pelo contrário, promete terraplana­r o futuro, transforma­ndo a política numa demente continuaçã­o da guerra por outros meios.

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