Diário de Notícias

“UM FADISTA CONSEGUE ENVOLVER OS OUTROS NA SUA HISTÓRIA”

- ANA SOUSA DIAS

É um conversado­r nato, este homem que consegue impor-se a cantar baixinho, muito baixinho. Conversa sempre no tom de quem está na sua casa de fados, na Mouraria, a contar histórias do tempo em que começou e os mestres lhe davam ensinament­os e ordens como quem não quer a coisa. Amanhã, Helder Moutinho canta no São Luiz, em Lisboa, um concerto a que deu o nome de Escrito no Destino, que levará a 9 de maio ao Porto, à Casa da Música. Nasceu no meio do fado, como se estivesse misturado na comida.

Que concerto é o Escrito no Destino? É uma retrospeti­va do que tenho vindo a cantar desde sempre. Obviamente, os meus últimos discos – 1987 e Manual do Coração – são os que estão mais vivos neste momento, mas fui repescar temas antigos, alguns que não costumo cantar. O fado estava misturado no Cerelac quando era pequenino? Por acaso eu comia mais Nestum com mel. Se tivesse nascido em Sevilha, seria cantor de flamenco. A música estava connosco, esta foi a nossa oportunida­de, o que nos foi entregue: vocês têm isto. Gostam de música? Têm aqui esta. E quem é que entregou isso? A família. O meu bisavô já era fadista, foi um dos primeiros fadistas conhecidos da história. Ele passou o bichinho ao meu avô, ao meu tio-avô, por sua vez ao meu pai. Há muito pouco tempo, uma tia-avó minha, a tia Palmira, foi à minha casa de fados. Entrou, cantou, ia com uns amigos. Fiquei de boca aberta, não sabia. A minha mãe contou-me que ela podia ter sido uma fadista mas o meu bisavô não a deixava cantar, tinha medo, porque na altura não era tão fácil como isso. Os seus pais passaram isto para os filhos todos? Sim, com as matinés de fado, as tertúlias com os amigos em Cascais. Os três fadistas – o Pedro Moutinho, o Helder Moutinho e… … o Carlos Moutinho… … também conhecido por Camané. Já cantaram juntos? Só num evento privado, um aniversári­o do Montepio. Fizemos dois coliseus, Lisboa e Porto, no final de 2012. Só fiz porque aceitaram todas as condições. A principal era que não havia comunicaçã­o social, não podia ser anunciado. Houve promotores artísticos que queriam fazer uma tournée pelo país fora e nós dissemos que não. Em vez d’ Os Três Tenores? Havia a Kelly Family e nós éramos a Moutinho Family. Como se conheceram os seus pais?

O meu pai é nascido e crescido em Lisboa e, na juventude, na fase dos bailaricos, ganhou todos os concursos em Lisboa a dançar. Gostava muito de dançar, tipo Fred Astaire. Decidiram ir para a Linha do Estoril para conhecerem miúdas novas. Foi ao Baile dos Carecas, onde estava a tocar uma banda e o baterista era o Paulo de Carvalho. Acho que foi num sábado à tarde e a minha mãe ia com a minha avó, sempre acompanhad­a. Começaram a namorar. Ele metia-se no elétrico até à Cruz Quebrada, pendurado para não pagar bilhete, e apanhava o comboio até Santo Amaro. O meu pai contava-me pormenores, por exemplo como ia até ao alfaiate em Campo de Ourique. Não andavam à pressa como nós? Até a música era mais lenta. Há fados intemporai­s dessa altura que nós hoje voltamos a cantar. Nas versões antigas, eram muito mais lentos. As pessoas andam mais depressa. O fado podia ter 66 ou 67 versos e as pessoas tinham paciência para ouvir. Hoje tem de ter quatro quadras. Não havia trânsito, as pessoas saíam do emprego e iam para as tascas ou para as pastelaria­s conversar. Cantou sempre em casas de fados. Começou no Nonó, no Bairro Alto. Foi muito bom. Consegui ouvir e conhecer uma série de fadistas, os mestres, aqueles que nos deixaram a herança. Pudemos perceber como faziam. Não há escola de fado, não se vai a um sítio onde se ensina a cantar ou a ser fadista. Nas casas de fados, os mais velhos tinham essa “mania”. Nós acabávamos de cantar e eles diziam “naquela frase devias pensar em respirar naquele sítio, por causa da vírgula, aquilo não está muito bem”.

Quem lhe fez isso, por exemplo? O António Rocha, que canta n’ O Faia e é um fadista fantástico, daqueles puros e duros, poeta. A Beatriz da Conceição era mais indireta. Dava-me um livro de poemas, obrigava-me a ler e dizia que não estava a entender nada. Ela repetia as frases, obrigava-me a repetir. E depois era ouvir os outros. Ouvi-los cantar o mesmo fado hoje, amanhã e depois, perceber as dificuldad­es. Cantar bem é saber gerir a voz que se tem. Aprendi muito com a Beatriz da Conceição, a atitude para impor a atenção. As pessoas diziam: “A Beatriz quando se levanta para ir cantar já é fado.” E consegue explicar? Ela estava sentada a jantar, apagavam-se as luzes, e parecia que era bipolar. Mudava de atitude: “Agora, vocês têm de olhar para mim, sou eu que vou contar a história.” Na Parreirinh­a, a tia Argentina Santos chamava-me “o polícia” porque aprendi com a Beatriz, ia com a atitude toda. Vamos imaginar que antes alguém tinha cantado uma marcha popular, era o início da noite e as pessoas estavam a jantar. Estava tudo a fazer barulho, eu aparecia e as pessoas ficavam a olhar umas para as outras, quem é este? Eu dizia aos músicos: Vielas de Alfama, um fado muito lento que se canta muito baixinho. Começava a cantar e calava-se tudo. Tem uma casa de fados, a Maria da Mouraria. Tenho uma média de 70% de turistas e 30% de portuguese­s. Os turistas lá sentem-se portuguese­s, aquilo não está formatado. Não falo com eles em inglês –

And now I’m gonna sing the fado. It’s about saudade, não sei quê, portuguese guitar. Não faço nada disso. No outro dia estávamos depois de jantar a confratern­izar, eu, os meus irmãos, o Carlos do Carmo, a Gisela, a Ana Sofia Varela, uma série de fadistas que nem sequer lá cantam. Saí e quando entrei tinham apagado a luz. O que foi? O teu irmão disse que queria cantar dois fados. Qual deles?

O Camané. E começou a cantar. A seguir o Carlos do Carmo cantou cinco fados tradiciona­is, assim de repente. Depois cantou a Gisela, cantou a Ana Sofia, eu também. Estava lá um grupo de cinco americanos, putos novos, jovens, olharam para mim e disseram: “Passou-se aqui qualquer coisa de especial?” E eu: “Mais ou menos...” Eu comecei numa casa de fados onde isso acontecia quase todas as noites. O Nonó? Depois das duas e meia da manhã iam lá parar os fadistas de todo o lado, ou porque estavam em casas que fechavam mais cedo ou vinham de espetáculo­s e queriam ir comer qualquer coisa. Aconteciam coisas geniais. Cantava um, vamos imaginar que o que era normal era cantar quatro fados, mas, em vez de cantar quatro, cantava cinco. Mas cantava muito bem, picava o outro. O outro cantava seis. Picava o outro. Eu era o mais novinho, o caloiro, e o Nonó dizia-me – “agora vais tu”. Eu? Agora, depois disto? E ia? Ia. Mas naquela altura o que eu queria mais era estar a ouvir. Disse que o Tom Waits é um grande fadista. Porquê?

Quem me dera conhecer o Tom Waits. Um fadista é uma pessoa que consegue envolver as pessoas na sua própria história no momento em que a está a contar, de forma a que ficam enternecid­as, e tem uma série de faculdades para o fazer. Pode ser o timbre, a dicção, a forma como interpreta. Até pode ter essas coisas todas. Mas é o que os espanhóis chamam duende, uma magia que capta as pessoas, mesmo que nem entendam a letra toda. O Tom Waits tem a capacidade de contar histórias. Há um tema fantástico que às vezes canto na brincadeir­a, o Waltzing Matilda, que é uma coisa genial. O que interessa ali não é a voz, e aliás ele tem uma voz fantástica – como é que com uma voz tão rouca consegue dar aquelas notas todas e parece tão fácil? É essa capacidade de interpreta­ção que ele tem. Agora temos cá um mas eu não posso ir ver porque é no mesmo dia em que eu estou a cantar: o Bob Dylan. Também gosto, também é um fadista.

“Há pouco tempo, a minha tia-avó Palmira foi à minha casa de fados. Cantou e fiquei de boca aberta. Podia ter sido fadista mas o meu bisavô não a deixava cantar” “Cantámos juntos – os três irmãos – num evento privado, o aniversári­o do Montepio. A condição foi não haver comunicaçã­o social, não podia ser anunciado” “Depois das duas e meia da manhã iam parar ao Nonó os fadistas de todo o lado. Cantava um, picava o outro que cantava mais. O que eu queria era ouvir”

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