Diário de Notícias

Tecnologia versus democracia

- Guy Verhofstad­t é presidente do Grupo Aliança dos Liberais e Democratas para a Europa (ALDE) no Parlamento Europeu

OInstagram, uma plataforma de partilha de fotografia­s que é propriedad­e do Facebook, cedeu recentemen­te a uma exigência do governo russo para que retirasse publicaçõe­s do líder da oposição Alexey Navalny relativas a má conduta por parte do vice-primeiro-ministro russo Sergei Prikhodko. Num vídeo do YouTube que obteve quase seis milhões de visualizaç­ões (e que ainda está disponível), Navalny mostra Prikhodko a conversar com o oligarca Oleg Deripaska num iate na Noruega, onde ele alega que ocorreu suborno.

Depois de as publicaçõe­s da Navalny terem aparecido, Deripaska foi ao regulador de comunicaçõ­es russo Roskomnadz­or solicitar que o Facebook removesse o conteúdo, o que este imediatame­nte fez. Este episódio já atraiu muita atenção, bem como críticas ao Facebook. E no entanto houve milhares de outros casos semelhante­s.

Numa época em que a maioria das pessoas recebem as notícias através das redes sociais, os Estados mafiosos têm tido pouca dificuldad­e em censurar o conteúdo das redes sociais que os seus líderes considerem prejudicia­is aos seus interesses. Mas, para as democracia­s liberais, a regulament­ação das redes sociais não é tão direta porque exige que os governos consigam um equilíbrio entre princípios concorrent­es. Afinal, as plataforma­s de redes sociais não só desempenha­m um papel crucial como são condutas para o livre fluxo de informaçõe­s; elas também têm enfrentado fortes críticas por não policiar conteúdo ilegal ou abusivo, particular­mente discursos de ódio e propaganda extremista.

Essas falhas levaram à ação de muitos governos europeus e da própria União Europeia. A UE emitiu agora diretrizes para empresas de internet e ameaçou prosseguir com legislação formal se as empresas não cumprirem. Como Robert Hannigan, o ex-diretor da agência de informaçõe­s britânica GCHQ, observou recentemen­te, a janela para as empresas de tecnologia se reformarem voluntaria­mente está a fechar-se rapidament­e. Na verdade, a Alemanha já promulgou uma lei que impõe multas severas a plataforma­s que não eliminem os conteúdos ilegais de utilizador­es em tempo útil.

Estas medidas em curso são uma resposta à utilização das plataforma­s de redes sociais por agências de in- formações governamen­tais e grupos extremista­s com o fito de dividir sociedades ocidentais com discursos de ódio e desinforma­ção.

Especifica­mente, sabemos agora que a Agência de Pesquisa na Internet, ligada ao Kremlin, levou a cabo uma campanha em grande escala no Facebook e no Twitter para aumentar as hipóteses de Donald Trump nas eleições presidenci­ais de 2016 nos EUA. De acordo com a recente acusação por Robert Mueller de três organizaçõ­es e 13 indivíduos russos, um exército de trolls russos passou os meses que precederam as eleições de 2016 a provocar tensões raciais entre os americanos e a desencoraj­ar os eleitores minoritári­os de, por exemplo, se virarem para a adversária de Trump, Hillary Clinton.

As conclusões de Mueller levantam obviamente questões importante­s sobre a transparên­cia e a proteção das instituiçõ­es democrátic­as na era digital. Apesar de se terem tornado ferramenta­s de operações especiais do Kremlin, as principais plataforma­s de redes sociais têm-se mostrado relutantes em fornecer informaçõe­s aos governos democrátic­os e ao público.

Por exemplo, no Reino Unido, o deputado Damian Collins lançou uma investigaç­ão sobre a interferên­cia russa no referendo sobre o brexit de 2016, mas tem tido muita dificuldad­e em receber grande cooperação do Facebook e do Twitter. Em dezembro, ele descreveu a resposta do Twitter às suas perguntas como “totalmente inadequada”. Isso é lamentável. Quando a própria democracia está em jogo, as plataforma­s de redes sociais têm a responsabi­lidade de ser transparen­tes.

Além disso, se a Rússia consegue interferir tão plenamente no processo democrátic­o dos EUA, imagine-se só o que tem feito na Europa, onde ainda não sabemos quem financiou algumas das campanhas online nas recentes eleições e referendos nacionais. Suspeito que ainda só arranhámos a superfície no que respeita a expor a intromissã­o estrangeir­a nas nossas instituiçõ­es e processos democrátic­os. Devemos estar mais bem preparados nas eleições para o Parlamento Europeu em maio de 2019. Os gigantes tecnológic­os, por sua vez, continuarã­o a afirmar que estão apenas a distribuir informação. Na verdade, eles atuam como editores e devem ser regulados em conformida­de, e não apenas como editores, mas também como detendo um quase monopólio de distribuiç­ão.

É certo que a censura e a manipulaçã­o de informação são tão antigas quanto as próprias notícias. Mas o tipo de guerra híbrida patrocinad­a pelo Estado que vemos hoje é algo de novo. Os poderes hostis transforma­ram a nossa internet aberta numa fossa de desinforma­ção, grande parte da qual é espalhada por bots automatiza­dos que as principais plataforma­s poderiam purgar sem minar o debate aberto, isto é, se elas tivessem vontade de o fazer.

As empresas de redes sociais têm o poder de exercer uma influência significat­iva nas nossas sociedades, mas não têm o direito de estabelece­r as regras. Essa autoridade pertence às nossas instituiçõ­es democrátic­as, que são obrigadas a garantir que as empresas de redes sociais se comportem de forma muito mais responsáve­l do que se comportam agora.

Os poderes hostis transforma­ram a nossa internet aberta numa fossa de desinforma­ção

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Ex-primeiro-ministro belga

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