A grande viagem dos livros JORNALISTA
Mais uma vez, como quase sempre, os livros. Christine Féret-Fleury (n. 1961) interrompe quase uma década de silêncio literário para seguir os passos incertos e hesitantes, as transformações penosas mas irreversíveis de uma jovem mulher, Juliette, que se apresenta aos leitores como a protagonista de uma vida banal e cinzenta. Vive sozinha, não contabilizando já os desgostos de amor pelos homens que rapidamente se desinteressam dela e da companhia tímida que oferece; tem um emprego de tons cinzentos, que nem a motiva nem a impele a aperfeiçoar o papel em que uma colega parece especializar-se – o home staging, que consiste em mostrar de uma forma “encenada” uma casa aos putativos compradores, de tal forma que estes se deixem embalar pelo romantismo, pela patine, pelos pormenores realçados de um determinado apartamento, e não cheguem a reparar nos múltiplos defeitos que cabem lá dentro. Vive de rotinas, como as quatro torradas do pequeno-almoço, a refeição preparada de véspera para comer à secretária, a maçã e as bolachas de manteiga ao lanche, as tarefas domésticas concentradas no horário pós-laboral, a necessidade diária de matar uma ou duas aranhas que lhe aparecem pela canalização quando toma duche, a sessão de cinema infalível no serão de sexta-feira.
Todos os dias, também, há uma viagem de metro que lhe vale como um recreio, como uma aventura: primeiro, pela leitura que, num certo momento menos inspirado do romance escolhido, a leva a bloquear; depois, quando troca esse hábito pelo “vício” de observar e estudar aqueles que com ela viajam regularmente numa certa linha do metro parisiense; há a mulher madura que sorri enquanto folheia livros de cozinha; o homem que parece alheado de tudo o que possa passar-se à sua volta e muda de livro com um ritmo invejável; a jovem e sensual mulher que prefere os romances de amor e chora metodicamente quando chega à página 247 de cada um deles… Aí está um cenário cada vez menos realista – e quem vos garante isto é um “passageiro frequente” de comboios e metro – porque muitos dos livros que, antes, apareciam semeados por uma carruagem aparecem, por estes dias, substituídos pelo manuseamento obsessivo dos “telefones espertos” e de outras plataformas de entretenimento e/ou trabalho. Admitamos, ainda assim, que a brisa parisiense permita um perfume mais literário…
Tudo muda no dia em que Juliette corre o risco de alterar as etapas que percorre para chegar ao emprego, decidindo fazer a pé parte do percurso. Saltemos – em nome da descoberta de quem chegar a esta história – capítulos: num ápice, e num envolvimento magnético e assustador, a protagonista envolve-se numa iniciativa promovida por um homem misterioso (e cuja singularidade no modus vivendi leva a que Juliette chegue a suspeitar tratar-se de um terrorista, num reflexo condicionado pela nossa época) que montou uma rede de “passadores de livros”, de forma anónima e aparentemente aleatória. Só não acontece rigorosamente isto porque o homem em questão gosta que os seus operacionais estudem previamente os que vão receber os livros e, se possível, que os acompanhem depois do facto consumado. Ou seja, após as respetivas leituras. Há uma semana, aqui se falava de Alberto Manguel e da sua ligação física aos livros, de que não consegue separar-se. Aqui, o percurso é inverso: oferecer o livro certo a alguém, sem disso buscar recompensa, pode transformar vidas, como se dá conta na narrativa de Féret-Fleury. Por outras palavras, o que fica é um roteiro alternativo de uma paixão em tudo semelhante, pelas palavras impressas e pelas suas consequências. Talvez ajude a que se evite a extinção de um amor que não esmorece nem admite traições.