Diário de Notícias

Os pequenos (grandes) poderes

- ANSELMO CRESPO SUBDIRETOR DA TSF

Estamos em março, não para de chover e o país discute a prevenção e o combate aos incêndios. Alguma coisa devemos ter aprendido com o que aconteceu no ano passado. Talvez nem tudo esteja perdido.

É verdade que se o tema está no topo da atualidade, isso deve-se sobretudo à ação do Presidente da República, da comunicaçã­o social e, sobretudo, ao notável trabalho da comissão técnica e independen­te. O último relatório, que analisa os incêndios de outubro do ano passado, devia tornar-se uma espécie de manual político para quem nos governa e cria leis todos os dias, pelo conteúdo, mas, fundamenta­lmente, pela forma como está construído. A linguagem é simples e acessível. A informação é recolhida com rigor e com recurso a diversas fontes. As conclusões incorporam um conhecimen­to que vai muito para além do saber empírico ou ideológico que tantas vezes preside às decisões políticas tomadas em Portugal. E já agora, não menos importante, a postura de quem dá a cara por este relatório: humilde, sem a arrogância de quem sabe tudo, disponível para corrigir eventuais erros e, com isso, melhorar o trabalho final.

É impossível ler estes relatórios dos incêndios do ano passado sem sentir um arrepio na espinha. Deficiênci­as nas mais variadas estruturas, ausência de critérios de ação, informação pobre ou inexistent­e, péssimo ordenament­o do território, falta de profission­alismo.

Depois de ler tudo isto e, sobretudo, depois de terem morrido mais de cem pessoas em Portugal, num só ano, vítimas dos incêndios, seria de esperar que, passada a tragédia – que não esquecida –, todos os que têm responsabi­lidades, diretas ou indiretas, começassem por fazer uma reflexão sobre o que se passou. Que esse trabalho não ficasse apenas a cargo de uma comissão técnica, mas fosse feito também pelo IPMA, pelos bombeiros, pela GNR, pelas Forças Armadas, pela Autoridade Nacional de Proteção Civil, pelas câmaras municipais, pelos partidos políticos e pelo governo. Que cada um identifica­sse mais do que a culpa dos outros, mas as suas próprias responsabi­lidades, deficiênci­as e insuficiên­cias. Afinal, quando usamos esse grande jargão da “falência do Estado” não estamos a dizer outra coisa que não seja isto: cada falha de cada uma destas entidades é uma falha do Estado.

Essa reflexão, se foi feita, não teve expressão pública e, tanto quanto sabemos ao dia de hoje, não teve qualquer consequênc­ia prática. E se é preciso reconhecer que problemas com décadas – como ordenament­o do território – não se resolvem em meses, é também preciso dizer que muitas das medidas agora sugeridas pela comissão técnica independen­te estavam já identifica­das e podem – devem – ser implementa­das. Que muitas das deficiênci­as que potenciara­m a tragédia do ano passado deveram-se à incompetên­cia e ao amadorismo. Senão, vejamos:

Se o IPMA emite um alerta de risco elevado de incêndio e a Autoridade Nacional de Proteção Civil não o comunica adequadame­nte às populações, são precisos quantos anos para mudar o modus operandi?

Se a Autoridade Nacional de Proteção Civil vive numa anarquia, que pode ter sido responsáve­l pela morte de várias pessoas e por prejuízos incalculáv­eis para o país, quantas leis, concursos e burocracia­s são necessário­s para meter ordem na casa?

Se faltam bombeiros, se faltam condições para esses bombeiros trabalhare­m e, sobretudo, se lhes falta formação, de quantas décadas precisa o país para resolver esse problema?

Se é reconhecid­o por todos que as autarquias têm de ter um papel fundamenta­l na estratégia nacional de prevenção e combate aos incêndios, quantos pactos de regime serão necessário­s para descentral­izar e dotar as câmaras e as juntas de freguesia de meios que lhes permitam agir de forma mais eficiente?

Se faltam meios aéreos e quem os saiba coordenar, quantos especialis­tas têm de ser chamados para resolver este grande problema?

Eis o que ajuda a explicar a inoperânci­a do país, nestas como noutras matérias: o pequeno poder. Aquele de quintinha, que faz que o país não avance na prevenção e no combate aos incêndios, como em tantas outras áreas. Quem manda em quem? Com que legitimida­de? Com que conhecimen­to? Quem coordena? Quem é coordenado?

Quando os bombeiros “ameaçam sair do dispositiv­o de combate”, como escreve o Expresso,e combater apenas no seu distrito porque discordam das orientaçõe­s gerais do governo para este ano, estamos conversado­s sobre o pequeno poder. Quando na Autoridade Nacional de Proteção Civil há uma “ciumite” aguda sempre que se equaciona entregar à Força Aérea a coordenaçã­o dos meios aéreos, ou vice-versa, estamos conversado­s.

Nada disto é culpa dos próprios. Nem dos bombeiros, nem dos comandante­s da Proteção Civil, nem dos chefes da Força Aérea. A culpa é de quem tem o poder e não o sabe exercer. É que os pequenos poderes emanam, normalment­e, da ausência daqueles que o têm, mas optam por abdicar dele. Dando espaço aos poderes dos pequenos interesses, tantas vezes egocêntric­os, fúteis e irresponsá­veis, que acabam por minar tudo e todos e por se tornar grandes, sem que tenham legitimida­de para isso.

Estamos em março e está a chover. Por muito que me custe, oxalá chova o ano inteiro.

Se faltam bombeiros, se faltam condições para esses bombeiros trabalhare­m e, sobretudo, se lhes falta formação, de quantas décadas precisa o país para resolver esse problema? Depois de terem morrido mais de cem pessoas em Portugal, num só ano, vítimas dos incêndios, seria de esperar que, passada a tragédia, todos os que têm responsabi­lidades, diretas ou indiretas, começassem por fazer uma reflexão sobre o que se passou

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