OS CATALÃES PERDERAM UM LÍDER OU GANHARAM UM MÁRTIR?
Um juiz vai ouvir hoje Carles Puigdemont, desde ontem detido na prisão de Neumünster, no estado mais a norte da Alemanha, o Schleswig-Holstein. Um revés para o ex-presidente do governo da Catalunha. Saíra de forma apressada da Finlândia, de regresso à Bélgica, para evitar a sua detenção na sequência do pedido de reativação do mandado de detenção europeu. “Acabou-se a fuga do golpista”, comentou o presidente dos Ciudadanos, Albert Rivera.
Golpista para uma parte da sociedade espanhola, herói ou mártir para outra, em especial na Catalunha, as opções do homem que liderou o processo independentista entre janeiro de 2016 e outubro do ano passado começam a escassear.
Com a opção de se auto exilar na Bélgica, o antigo jornalista e ex-presidente da Câmara de Girona não enfrentou as consequências do referendo ilegal que convocou. “Não tenho vocação para mártir, tenho vocação para presidente”, afirmou. Uma opção diferente de outros dirigentes, a começar pelo seu vice-presidente da Generalitat e líder da ERC, Oriol Junqueras. Os republicanos de esquerda e a extrema-esquerda da CUP há muito que criticaram a opção de Puigdemont. É que, tendo em conta a formação parlamentar e as medidas legais entretanto tomadas, bloqueou as hipóteses de formação de governo.
“Um mártir em Bruxelas”, titulou na manchete o Financial Times em novembro. O início do texto seguia na mesma linha: “O mundo tem um novo e heroico lutador pela liberdade.” Assinada pelo diretor Robert Shrimsley, a peça começou a ser partilhada nas redes sociais pelos nacionalistas catalães. Até se darem conta de que era um texto satírico. É entre o trágico e o ridículo que a crise política se desenrola na Catalunha.
Após a audição ao juiz de primeira instância, a Procuradoria-Geral de Schleswig-Holstein vai decidir se Puigdemont fica em liberdade condicional ou se passará a decisão ao Supremo Tribunal de Schleswig-Holstein, o que poderá colocá-lo em prisão preventiva. O processo de extradição para Espanha tem prazos entre dez e 60 dias, e em casos excecionais 90 dias, a partir do dia da prisão.
Iniciada em Helsínquia, a viagem de automóvel e ferry de Puigdemont durou mais de 20 horas e 1500 quilómetros e terminou de forma abrupta na localidade de Schuby, pouco após ter cruzado a fronteira da Dinamarca com a Alemanha. Faltavam ainda cerca de 800 quilómetros para chegar ao destino, Waterloo. Local histórico no qual há dois séculos Napoleão perdeu o império, o independentista catalão aí tinha fixado residência e planeava montar o “conselho da república”. Esta era a mais recente jogada, uma espécie de governo à distância mesmo sem conseguir ser eleito no Parlament presidente do governo catalão.
A reativação do mandado de detenção europeu por parte do juiz do Supremo Tribunal Pablo Llarena, na sexta-feira, obrigou-o a regressar mais cedo do Norte da Europa. Mas decerto esperava que uma vez alcançado o reino dos belgas teria boas hipóteses de permanecer aí. Na Bélgica não existe o crime de rebelião, pelo qual a justiça espanhola o acusa (e em caso de condenação enfrenta uma pena de 30 anos de prisão). Essa era uma janela legal para impedir a extradição.
A outra é a de que a justiça daquele país é sensível às alegações de possíveis violações de direitos fundamentais. Ao El País, fontes judiciais espanholas acreditavam que as autoridades belgas só extraditariam Puigdemont caso Madrid concordasse em julgá-lo apenas por peculato.
Mas esse cenário está agora posto de parte. Segundo o porta-voz de Puigdemont, Joan Maria Piqué, “o presidente estava a caminho da Bélgica para se colocar, como sempre, à disposição da justiça belga”. Para lutar contra o processo de extradição contava com o advogado especialista em direitos humanos Paul Bekaert.
À Reuters, o causídico belga explicou que o seu cliente decidiu ter representação legal alemã. E que o processo, incluindo possíveis recursos, poderá “levar meses”.
Puigdemont poderá levar o seu caso ao mais alto tribunal da Alemanha. A mesma instância que em 2005 causou uma disputa judicial entre Berlim e Madrid, após ter negado a extradição para Espanha de um suspeito de pertencer à Al-Qaeda, Mamoun Darkazanli. O Tribunal Federal Constitucional recusou-se a entregar Darkazanli, tendo justificado que as leis de extradição da União Europeia destinadas a acelerar a entrega de suspeitos entre os Estados membros violavam os direitos dos cidadãos alemães.
Por outro lado, o Código Penal alemão não contempla o crime de rebelião. O mais similar é o de alta traição. As penas de prisão previstas são de dez anos até prisão perpétua (na prática, a partir dos 15 anos de prisão os condenados podem ser libertados) para “quem intente com violência ou ameaça de violência” pôr fim ao Estado alemão como um todo ou ameace “a ordem constitucional” da República Federal da Alemanha.
Ontem, a polícia escocesa anunciou ter pedido a Clara Ponsatí, ex-conselheira da Educação do governo de Puigdemont, para se entregar às autoridades e ser detida. Ponsatí tinha saído de Bruxelas para dar aulas na Universidade de Saint Andrews. A primeira-ministra da Escócia Nicola Sturgeon lamentou a situação e reiterou o apoio à autodeterminação da Catalunha.
Na Bélgica, Puigdemont queria evitar a extradição e formar o conselho da república, uma espécie de governo
A acusação aos 25 dirigentes políticos secessionistas, e a detenção de Puigdemont, Jordi Turull, Josep Rull, Raül Romeva, Carme Forcadell e Dolors Bassa levaram à rua milhares de catalães. Manifestantes e polícia entraram em confronto. As autoridades contaram pelo menos 59 feridos (53 em Barcelona, seis em Lleida), dos quais oito polícias. Procederam à detenção de quatro pessoas e à identificação de um número não divulgado. Um dos manifestantes identificados pelos Mossos d’Esquadra, em frente à delegação do governo espanhol na Catalunha, é um agente policial fora de serviço.