Diário de Notícias

O homem que mudou a noite de Lisboa com o Frágil e o Lux

Com a abertura do Frágil, em 1982, levou os artistas para o decadente Bairro Alto. Em 1998, abriu o Lux

- LINA SANTOS

“O nosso amigo Manuel Reis partiu hoje. Para mim, além de amigo, foi um mestre” MARGARIDA

MARTINS PRESIDENTE DA JUNTA DE FREGUESIA DE ARROIOS “É um génio da liberdade. Alguém que trabalha para libertar. Fê-lo no Frágil, continua a fazê-lo no Lux”

FERNANDA CÂNCIO JORNALISTA A 5 DE MARÇO, NO DN

Sempre que se escreve a história da noite de Lisboa, o nome de Manuel Reis ocupa muitas páginas. Da fundação do Frágil no Bairro Alto, nos anos 1980, à inauguraçã­o do Lux, na euforia da Expo’98. Manuel Reis morreu ontem aos 71 anos. “O Manuel fez maior esta cidade, o nosso mundo, e as nossas vidas também”, diz o comunicado enviado por aqueles que fazem o Lux .

Pelo Frágil, a discoteca que abriu no número 126 da Rua da Atalaia, no Bairro Alto, a 15 de junho de 1982, passaram artistas plásticos, atores, jornalista­s, escritores, fotógrafos. Sérgio Godinho e Jorge Palma, Alexandra Lencastre e João Botelho, Clara Ferreira Alves e Maria João Avillez. António Variações e Miguel Esteves Cardoso. Todos os que passaram o crivo das porteiras, a cantora Anamar, então uma estudante do Conservató­rio Nacional, e Margarida Martins, hoje presidente da Junta de Freguesia de Arroios, mas que na altura se tornou uma figura da noite de Lisboa, recebendo a alcunha de Guida Gorda.

“Meu mestre, partiu”, escreveu a antiga relações-públicas no Facebook ontem à noite. Numa entrevista ao Sol,a propósito do encerramen­to do bar, em 2012, quando Manuel Reis já há muito tinha deixado o Bairro Alto, Margarida Martins descreveu aquele espaço como “sala de cultura”. “Foi a primeira vez que fomos modernos e cosmopolit­as à noite”, lembrou sobre essas noites dos anos 1980.

Quem esteve na inauguraçã­o do Frágil recorda as colunas douradas, as peças encontrada­s em mercados, a cortina de veludo vermelho. Tudo escolhido por Manuel Reis. “A primeira de todas as outras noites que se seguiram em data”, recordou a empresária de A Vida Portuguesa Catarina Portas ao Sol.

Manuel Reis, nascido a 29 de julho de 1946, vendia antiguidad­es e era dono da Loja da Atalaia, foi o homem que trouxe os artistas para um bairro decadente. Aqueles que hoje vemos nos museus, como Pedro Cabrita Reis e Rui Sanches, foram convidados a trabalhar no Frágil. O bar que ocupou os espaços deixados vagos pela Padaria de São Roque e a Tasca da Gaivota – onde um pássaro desta espécie, preso por um cordel a uma mesa, afastava cães e gatos – após um longo período de obras. Entre a reforma e a inauguraçã­o, no verão de 1982, Fernando Fernandes e José Miranda abrem o restaurant­e Pap’Açorda, outro marco do Bairro Alto dos anos 1980. O que Manuel Reis fez à noite no Frágil começou de dia nas montras da Loja da Atalaia, onde mostrou o trabalho de designers portuguese­s como MiguelViei­ra Baptista, Filipe Alarcão ou Miguel Rios.

Era um homem tímido, avesso a entrevista­s, a falar com jornalista­s. Quando Pedro Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, proibiu que se dançasse nos bares do Bairro Alto, encheu a pista de cadeiras. “Manuel Reis é um génio de Lisboa, daqueles que emergem das lamparinas e que nos oferecem três desejos. Quanto mais impossívei­s os desejos mais ele teima em realizá-los. O Frágil e o Lux Frágil eram impossibil­idades, continuam a ser fantasias que, ninguém sabe como, se tornaram realidades”, escreveu Miguel Esteves Cardoso no Público, a 13 de janeiro.

“[Manuel Reis] é um génio da liberdade. Alguém que trabalha para libertar. Fê-lo no Frágil, continua a fazê-lo no Lux. Corpos, cabeças, ideias, costumes – da maneira mais eficaz e antiga que existe, a de criar lugares de encontro, de cruzamento, de troca, de entrega, de comunhão, de amor: cidades dentro da cidade. Cidades de dança”, escreveu Fernanda Câncio no DN, a 5 de março.

No final dos anos 1990, Manuel Reis trocou o Bairro Alto por Santa Apolónia. Quase a mesma história de fazer a diferença, se podia contar da discoteca Lux Frágil, onde Manuel Reis teve o ator John Malkovich como sócio. Um lugar para uma nova geração de pessoas que começavam a sair à noite (e de dia), de concertos únicos, onde Michael Stipe esteve depois do primeiro concerto em Lisboa, em 1999. O Lux tinha inaugurado meses antes, a 29 de setembro de 1998, um dia antes do encerramen­to da Expo’98. No Lux, Joana Vasconcelo­s, a artista, chegou a estar à porta; Yen Sung converteu-se numa das primeiras mulheres DJ portuguesa­s; apresentar­am-se livros de poemas de Mário Cesariny, casou-se. Simbolicam­ente, o designer Ricardo Mealha antes da lei que permite casamentos entre pessoas do mesmo género ser aprovada. Aqui se encontrara­m a arte e a moda portuguesa­s.

Rive-Rouge foi a sua última inauguraçã­o em 2016. Um bar, onde também se pode dançar, no Mercado da Ribeira.

A cerimónia de despedida será no Teatro Thalia, em Lisboa. “À noite, como o Manuel gostava, em hora a comunicar”, segundo o comunicado do Lux.

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