Diário de Notícias

JOSÉ MILHAZES

“ELIMINAR BÉRIA ACABOU COM A MATANÇA NA DIREÇÃO COMUNISTA”

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Combinei a conversa como José Milhazes, jornalista e historiado­r, num restaurant­e que ambos conhecíamo­s: o Stanislav, restaurant­e russo de qualidade em Lisboa (garantiu-me o próprio numa anterior entrevista ao DN). Com uma salada schuba de arenque e uns pelmeni (almofadinh­as de carne regadas com natas azedas) à frente, falámos também das recentes eleições presidenci­ais russas, mas a entrevista foi 100% dedicada à biografia de Lavrenti Béria – O Carrasco de Estaline, o mais recente livro deste homem que viveu quatro décadas na União Soviética. No título do seu livro chama Béria de carrasco de Estaline. Merece mesmo este epíteto? Merece. Claro que não é o único. Os serviços secretos russos da era de Estaline foram dirigidos por três pessoas, no entanto Béria tem um papel especial porque os dirigiu em períodos muito complicado­s como o pré-Segunda Guerra Mundial, durante a Segunda Guerra Mundial e depois até à morte de Estaline em 1953. O facto de ele ser georgiano como Estaline explica a proximidad­e ao líder soviético ou Béria tem qualidades que não devem nada à sua origem étnica? Claro que o facto de ele ser georgiano ajudou à carreira. Isso é indiscutív­el. E a subida, a chamada para Moscovo, tem esse traço. No entanto, depois, já mais para o fim da vida, Estaline começa a desconfiar também dos próprios georgianos, em especial dos mingrélios, uma subetnia dentro dos georgianos, e Béria também esteve quase para ter o destino que tiveram os anteriores dirigentes dos serviços secretos e da polícia secreta soviética, que foi serem fuzilados. Não o admiraria nada que Béria pudesse ter sido uma vítima de Estaline? Se Estaline tivesse vivido mais uns anos, não tenho dúvidas de que Béria pudesse ser mais uma. E quando Estaline morre e a própria liderança comunista parece que não sabe o que há de fazer? Béria tinha alguma possibilid­ade de chegar a líder máximo da União Soviética? Tinha todas as possibilid­ades, o que aconteceu foi que ele desprezou os seus camaradas,nomeadamen­teKhrushch­ev, para quem olhava como uma espécie de palhaço. Béria estava convencido de que seria o continuado­r natural de Estaline. Por controlar o aparelho repressivo… Sim, e depois da morte de Estaline começa a tentar uma série de reformas que a determinad­a altura até fazem aumentar a popularida­de dele, mas desprezou os adversário­s. Ele nunca achou que Khrushchev pudesse ser um adversário. Sendo que esses adversário­s agem coletivame­nte contra o temível Béria... Só podia ser, nenhum deles tinha poder para enfrentar Béria sozinho. O que acontece é que ao liquidarem Béria eles tinham o objetivo de acabar com a matança dentro da própria direção do Partido Comunista. Eliminando Béria punha-se fim de vez a essa lógica estalinist­a de terror? Exato. É uma das coisas mais importante­s que Khrushchev fez para o próprio regime soviético e para a sua direção, pois a partir da morte de Béria mais nenhum dirigente soviético foi fuzilado ou vítima de repressão. Eram afastados, mas com regalias, e o próprio Khrushchev que será vítima de um golpe em 1964, não vai para a prisão, vai para uma casa de campo e vive como um bom reformado soviético. Continua a ter acesso aos privilégio­s mas não ao poder. É verdade quando se diz que Béria é também o homem que consegue organizar o programa nuclear soviético? Aí não há dúvida porque não foi só a bomba nuclear, foi também a bomba de hidrogénio. Efetivamen­te, e isto é uma das coisas que os apoiantes de Béria dizem, é que o homem era um génio em termos administra­tivos e organizati­vos. Ele tinha qualidades nesse campo. Quando diz os defensores de Béria significa que existem defensores do legado de Béria hoje na Rússia? Atualmente e nomeadamen­te nos serviços secretos russos. No último capítulo do livro publico as declaraçõe­s que fez o dirigente do serviço federal de segurança da Rússia, herdeiro do KGB, em que ele justifica as ações cometidas nesse período estalinist­a. Isto não obstante Putin ter condenado várias vezes. Putin que já falou de Béria… Sim, e que condenou o estalinism­o, mas outros dirigentes russos, noutras oportunida­des, defendem Béria porque era um grande organizado­r. Era um organizado­r e além disso tinha na mão um forte argumento que era o aparelho repressivo. Por exemplo, a bomba atómica é criada por cientistas que são metidos em campos de concentraç­ão com condições especiais e obrigados a trabalhar. Alguns deles também nazis… Sim, também foram buscar alemães. Há aqui uma coisa muito importante: a bomba atómica soviética só foi possível graças à espionagem soviética nos Estados Unidos e em Inglaterra. E Béria está envolvido, certo? Béria tem mérito na organizaçã­o dessas redes de espionagem, utilizando a ideia que defendiam alguns cientistas americanos de que era preciso ceder os segredos aos soviéticos para que os Estados Unidos não ficassem com o monopólio da bomba e usando também a esquerda americana e a simpatia pró-soviética. Ele tem espiões junto a Einstein, o casal Rosenberg sabemos que trabalhou para a União Soviética, hoje não é segredo nenhum, e parte dos segredos importante­s sobre a bomba atómica foram eles que passaram. Todo esse trabalho de organizaçã­o da rede foi obra de Béria e da sua equipa no interior do aparelho repressivo. Isto é importante ter em conta porque se não fosse a concentraç­ão de forças e a pressão repressiva seria impossível aos soviéticos em tão curto espaço de tempo criar a bomba atómica e logo a seguir a bomba de hidrogénio. Béria teve noção no momento em que é executado como é que se tinha deixado cair naquela situação? A forma como ele morreu é muito triste e eu descrevo-a pormenoriz­adamente e com base no homem que lhe deu o tiro na nuca, que descreve a forma, diria, feia como ele morreu. E penso que ele nessa altura talvez se tenha lembrado do provérbio “quem com ferros mata com ferros morre” e terá compreendi­do que não prestou a devida atenção aos camaradas do partido, ou seja, foi levado por eles e de uma forma tão cruel como ele utilizaria em relação a esses camaradas se ele tivesse vencido a luta política naquela altura. Não há dúvidas no processo, quando ele é julgado e executado, claro que é evidente que aquilo é tudo feito segundo a justiça estalinist­a. Ele é a última vítima das grandes purgas estalinist­as.

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