FERNANDO ARAMBURU
“A ETA MATOU 856 PESSOAS. NÃO É UM ATO DE JUSTIÇA, É MONSTRUOSO"
O escritor Fernando Aramburu esteve em Portugal para falar do seu romance Pátria, um imenso e inesperado sucesso literário em Espanha. Já vendeu 700 mil exemplares e vai na 28.ª edição, um fenómeno de receção tão raro que foi considerado “extra literário” devido à dimensão transversal dos leitores que o romance afetou: “Pela primeira vez na minha vida sou lido por jovens e fazem-me muitas perguntas. Comprovei-o nos lançamentos do livro, onde em vez de ter pessoas com mais de 40 aparecem às centenas os mais novos.” O autor basco nasceu no ano em que a ETA (Euskadi Ta Askatasuna) foi fundada, em 1959, e viveu o conflito liderado pela organização nacionalista basca armada de perto até aos 25 anos. Desde então vive na Alemanha, país que adotou por outra razão que não a de fugir ao conflito: “Fui viver para lá nos anos 1980 por causa de uma mulher, com quem vivo ainda. Conheci-a enquanto estudávamos e foi o amor que me fez sair de Espanha e que lá me mantém.” Entretanto, foi correspondente jornalístico e deu aulas de castelhano até 2009, que considera a sua língua-mãe, até Pátria o libertar economicamente: “A princípio era difícil, mas tive sorte e com este romance pode ser que consiga viver da escrita. Pela primeira vez terei uma garantia económica por algum tempo. Antes, escrevi sobre tudo nos jornais: política, futebol...” Fernando Aramburu não idolatra a vida de autor e diz que “o trabalho de escritor é monótono e a minha vida é muito ritualizada”, mas a reviravolta com este sucesso permitiu-lhe ser lido em países onde nunca pensou ser traduzido: “É verdade, ninguém poderia prever que se tornasse um fenómeno social, tema de conversa diária e referência obrigatória nos artigos de opinião. Toda a gente expressou o seu pensamento sobre um romance e o mais estranho é que tudo começa a acontecer num momento em que o autor já desaparecera de cena porque já estava a escrever um outro livro.” O romance Pátria está para a literatura como Guernica para a pintura? Bem que gostaria, mas não sei se no futuro este livro merecerá um lugar na memória coletiva. Se assim acontecer, ótimo, porque um autor nunca deve pensar na repercussão do livro enquanto o faz pois o sucesso de um romance é decidido por outros que não ele: o leitor. Nunca pensei que Pátria seria um êxito, ou teria sido impossível escrevê-lo. É um livro inovador pois a questão da ETA não aparece muito na literatura. Fiz o que pude, mas a minha única intenção era escrever um bom romance sobre factos que me estão muito próximos e fazem parte da minha vida. A história recente do País Basco não é um tema para mim, sobre o qual tenha investigado pormenores em arquivos, em bibliotecas ou nos livros de História, é antes uma vivência pessoal e que afeta muitas pessoas que conheço. Era-lhe impossível não o escrever? Escrevo a partir de uma dor interior sobre o que aconteceu às vítimas do conflito no País Basco, uma situação horrorosa e triste de que queria deixar um testemunho literário sem sair da fronteira da ficção. Uma coisa é certa, não podia suspeitar de que este livro fosse suscitar uma resposta tão grande dos leitores. Encontrou a razão para esse sucesso? Existem diversas razões. Considero que muitos leitores ao lê-lo se encontram dentro da sua própria história. Numa mão, o leitor segura o Pátria e na outra tem a sua história pessoal. Percebi-o claramente ao visitar outros países – Itália, Argentina ou Colômbia –, onde existiu uma história coletiva também trágica. Então, o leitor pergunta-se continuadamente o que teria feito se matassem o pai ou se tivesse um filho no cartel. Foi isso que se passou comigo para o escrever; quanto ao leitor, ao contrário dos livros de História e de investigação, creio que criou um vínculo emocional com o que se lhe está a contar. Quando isto se verifica e se expande por muitos leitores, o livro torna-se um tema de conversa em todo o lado e o resultado é o sucesso. Nesse momento, o livro já não pertence ao autor pois não pode ir de casa em casa explicar o significado do romance. Já não é dono dele. Este é um livro que não o deixa sossegado mesmo depois de terminado? O romance levou-me três anos a escrever e já levo quase dois na promoção. Um dia destes fará mais tempo a falar dele, porque como será publicado em 19 países não posso deixar de responder ao apelo dos editores que desejam que vá aos seus países dar entrevistas. Que país o surpreendeu mais? Há países onde jamais publiquei um livro, como a China, a Albânia ou a Lituânia, bem como no difícil mercado da língua inglesa. Não é a primeira vez que trata o tema? Sim, já publiquei uma coleção de contos, Os Peixes da Amargura, e também toquei ao de leve na violência da ETA num outro livro, Años Lentos, designadamente na minha terra natal. É um tema que não me deixa indiferente, só que não quero que se converta no meu tema único. Tenho outros interesses. É a vez de outros escritores o fazerem? Houve escritores que trataram do tema antes de mim e haverá outros que escreverão depois. Quantos mais tratarem o tema melhor para que a perspetiva se torne mais abrangente para os cidadãos no futuro. Será mais fácil perceber a realidade existindo mais que uma versão. Uma visão menos parcial... Quem viveu aquela época tem necessariamente uma visão parcial. Uma pessoa sozinha não consegue abarcar tudo e o que sabemos resulta do que nos contaram e está nos livros e nas fotografias. O testemunho coletivo faz falta e deve começar com os factos narrados pelos contemporâneos. A ETA e a Guerra Civil são os dois grandes temas do século XX espanhol? É natural que as épocas em que aconteceram grandes tragédias inspirem relatos, livros, filmes ou quadros, enquanto quando nada se passa é um aborrecimento para os artistas. Não digo isto com cinismo, considero que a guerra é um bom negócio para os escritores porque lhes dá histórias. O terrorismo nacionalista não é um tema fácil para os escritores? Depende do escritor e se está em condições de criar um relato com interesse geral sobre um acontecimento, no entanto, o difícil é quando o terrorismo o afeta diretamente por ter conduzido a uma fratura social e o cidadão ter de se colocar de um lado ou de outro. Só morando fora de Espanha é que poderia ter escrito este livro? Como escrevi o livro na Alemanha até há quem diga que não estou bem informado, mas não creio pois estou naquela posição de quem vê os dois jogadores de xadrez a alguma distância e observa a partida sem se posicionar de um lado ou de outro lado. Contudo, não posso comparar, nem sei como seria a minha obra se continuasse a viver em Espanha. Sei que estar fora não significa que fique desinformado ou indocumentado. Garanto é que nunca estive emocionalmente distante a cada atentado e a cada morto senti-me sempre interpelado. Considera então que deu a verdade total dos acontecimentos? Um romance nunca deseja encontrar a verdade, tal como uma peça de teatro ou um filme, é antes uma representação dela. Existe um pacto com o leitor sobre o que se conta que consiste em que o leitor aceite que os personagens sejam como que reais e que a história coincida com a verdade – mas nunca a será. No cinema, o espectador acredita no que surge no ecrã e não pensa que os
atores decoraram um texto. O pacto é acreditar no que se vê ou lê. Este livro nunca pode ser lido como parte da história? Não o será jamais porque inventei tudo, não de um modo arbitrário pois tive em conta a história coletiva anterior. Quando queria escrever um capítulo pergun- tava à história real se se encaixaria e se seria possível; se a resposta era afirmativa, então avançava na escrita. A Guerra Civil ainda não está fechada e sobre ela escrevem-se muitos livros. No caso da ETA, também está longe de ser um assunto acabado? O tempo o dirá. Há espanhóis que acham que a Guerra Civil não está fechada e alguém já disse que uma guerra civil dura cem anos – é possível que esteja certo –, sendo que não faltam espanhóis nascidos após 1936 que ainda se posicionam de um ou doutro lado em relação aos acontecimentos, principalmente os que acham que perderam o que não deviam. Nem sempre perder uma guerra pode ser o fim, além de que antes da Guerra Civil os espanhóis também não estavam unidos. A ação da ETA era uma necessidade histórica ou inaceitável? É muito triste que se precise de matar por razões históricas. A ETA legitima-se a si mesma, mas vale a pena lembrar que em breve completam-se 50 anos sobre o assassinato de Martin Luther King, que dizia ser preciso defender as causas justas com métodos justos. O terrorismo separatista não foi um método justo, portanto? Nunca, porque para dizer que foi justo é necessário perceber que a ETA matou 856 pessoas, entre elas 24 crianças. Não é um ato de justiça, é monstruoso. Escreve uma homenagem às vítimas? Quando falo em público coloco-me sempre perto das vítimas, porque a política não me interessa. Voto sempre e basta-me. É um instinto que me leva a estar perto de quem sofreu e nisto sou um filho de Albert Camus, por ter tendência a pôr-me ao lado dos desfavorecidos da história e ninguém o é mais do que os que foram assassinados. É uma honra os descendentes das vítimas terem agradecido o livro, porque se os tivesse ofendido seria muito doloroso. Nunca quis aumentar a sua dor e converter-me em cúmplice do agressor. Entre as personagens, a viúva Bittori é a mais mítica. Concorda? Essa situação cabe à interpretação do leitor e não tomo parte. Bittori desencadeia o romance porque quer saber todos os detalhes de como mataram o seu marido e exige que lhe peçam perdão, principalmente quem o assassinou. Este desejo dá início a Pátria e é ela quem torna possível este romance. Bittori foi o primeiro elemento? Sim, o livro nasce de uma nota que tinha escrito há muito tempo e onde se dizia que a viúva de um homem assassinado pela ETA queria que lhe pedissem perdão a todo o custo. Era uma nota entre muitas que os escritores guardam e anos depois surgiu a imagem da cena final do romance. Ao unir a nota com essa imagem tive a ideia geral, em ambas está Bittori, enquanto a história foi sendo inventada conforme a escrevia. A palavra “cobardia” é fundamental neste romance? A cobardia que nasce do medo é muito humana e o terrorismo pretende gerar medo, pois o terror é uma forma muito eficaz de controlar as pessoas e fazer que desenvolvam uma estratégia de sobrevivência. O silêncio é uma das formas de resposta, porque a outra opção é a cumplicidade. Como vê a luta pelo separatismo da ETA e o que acontece na Catalunha? Ao terminar o conflito no País Basco a ETA deu lugar a uma situação histórica diferente, em que a ausência de violência supõe que se aceitem as instituições como o lugar onde os políticos devem encontrar soluções para os problemas dos cidadãos. Ao comparar com a Catalunha, pode dizer-se que os bascos têm uma história tão triste e sangrenta que não a queremos repetir. Por isso, creio, não houve contágio com a questão catalã. Se é evidente que a aspiração independentista de alguns catalães inspira simpatia numa parte do País Basco, ela não deu origem a uma segunda frente independentista porque não queremos a repetição de uma outra fratura social. Na Catalunha, como não houve violência, isso permitirá no futuro que os cidadãos reponham os laços sociais mais facilmente. Onde desembocará o conflito catalão? Creio que sacrificar a democracia é uma tática errada. Há interpretações para todos os gostos, mas a defesa da independência de maneira fanática por alguns deve deixar-nos alerta, até porque trata-se mais de uma rebelião dos ricos. O que achou do discurso do rei? Não me interessa. O rei é o chefe de Estado e defende o Estado, mais nada. Estas personagens cumprem um papel representativo e nem escrevem os seus discursos. Os bascos voltarão a pegar em armas? Após décadas de atentados e de bombas nada se conseguiu que não se obtivesse através do diálogo entre políticos. Alguma vez se sentiu atraído pela causa da ETA? Nunca provei o veneno nacionalista. Com 15 anos estive exposto como outros jovens mas nunca me pareceu que fazendo o mal se pudesse ter uma sociedade perfeita. Com o sucesso de Pátria, tal como Bittori regressa à sua terra, admite voltar ao seu país? Não, dificilmente deixarei a Alemanha. O que gostaria de cobrar à minha terra natal é impossível: a infância. Portanto, não preciso de regressar. É o seu livro mais autobiográfico? Não é autobiográfico, é antes o mundo com que convivi. Não foi para contar a minha vida que escrevi Pátria.