A Apple sabe quando vou ao WC?
Quando entro no automóvel o meu telemóvel coloca no ecrã a aplicação de podcasts para eu ouvir, no rádio, os meus programas preferidos.
Quando vou para casa, o meu telemóvel sugere-me uma aplicação capaz de ligar a mil quilómetros de distância o ar condicionado, para estar quentinho quando lá chegar.
Ao estacionar à porta, o meu telemóvel destaca outra app para controlar remotamente as iluminações do quintal e do interior do edifício.
Ao chegar à sala aparece-me o ícone para ligar a aparelhagem sonora e escolher músicas para ouvir enquanto cozinho o jantar.
No quarto aparece-me o Netflix para eu ver, antes de adormecer, uma sitcom na TV.
O meu telemóvel é um iPhone, da Apple. Supostamente a Apple não recolhe dados ilegais a partir do registo quotidiano, paulatino, detalhado, armazenado, transmissível no aparelho que controla todos os passos (e conta-os, um a um!) da minha vida pessoal.
Em cada atualização de sistema concordo, sem ver, com tudo o que dezenas de páginas de texto aborrecido dizem sobre não sei quantos direitos concedidos à Apple se clicar no botão “ok”. E clico.
Nunca me preocupei muito com a minha privacidade: “Eles sabem onde trabalho? Eles sabem onde vivo? Ele sabem quanto consumo de eletricidade? Eles sabem que músicas oiço? Que filmes vejo? De que podcasts gosto? Que livros leio? Os sites que consulto? As notícias que me interessam? A que horas adormeço? A que horas acordo? Se durmo sozinho? Ou acompanhado?... Quero lá saber! A minha vida é transparente, não os vai interessar...”
O último escândalo do Facebook e da utilização dos dados dos seus utilizadores por uma empresa que tentou influenciar eleições, como as do brexit ou as últimas presidenciais norte-americanas, provaram que eu tinha razão: a minha vida pessoal, de facto, não lhes interessa.
Como indivíduo eles, para já, estão-se nas tintas para as minhas virtudes e para os meus vícios. Ninguém vai telefonar-me a chantagear-me com os meus pecados e ninguém vai santificar-me pelos meus hipotéticos méritos.
O que lhes interessa, por enquanto, é o que eu represento ou, melhor dito, como eu me enquadro nas tendências em estudo.
Revela esse escândalo de violação dos dados pessoais que num jogo com meia dúzia de perguntas aparentemente inocentes os génios por detrás deste crime do século XXI conseguem traçar um perfil psicológico, social e político de cada indivíduo com rigor científico, ao nível de entrevista pessoal com especialista treinado.
Para já (desculpem a insistência no “para já”) o objeto desta escalpelização serve, sobretudo, para otimizar vendas comerciais e para gerar campanhas capazes de influenciar decisões de compra, de voto, de opinião, de negócios.
A gestão de dados pessoais em larga escala é, portanto, um instrumento de expansão do capitalismo moderno e de luta entre os que querem dominar o capitalismo moderno. O indivíduo entra nas contas todas desta gente mas, na verdade, conta muito pouco.
Na Europa as empresas estão, neste momento, a tentar aplicar uma regulamentação algo complexa de proteção de dados pessoais sobre todo o tipo de informação digitalizada, a começar numa simples agenda de contactos dum telemóvel e a acabar em monstros de informação acumulada, como a que existe nos servidores do Facebook, da Google ou da Apple.
Simultaneamente a esta tentativa de aperto legislativo, não há empresa que se apresente como inovadora e competitiva que não esteja a construir, a trabalhar e a otimizar um departamento de big data para tratamento, cruzamento, análise, exploração e monetização (que palavras espantosas vão, entretanto, emergindo!) dos triliões de dados pessoais que circulam por aí...
As leis de controlo da utilização dos dados pessoais são, portanto, uma tentativa de parar uma enorme maré com as mãos. Vão falhar.
O passo seguinte parece ser inevitável: o acesso a dados pessoais vai ser uma arma permanente das maiores empresas mundiais, das máfias criminosas, dos grandes conglomerados de comunicação, dos terroristas mais organizados, das formações políticas mais ágeis. Nem que seja pelo roubo, muita gente não quererá ficar fora do acesso a essa fortuna e a essa fonte de poder. Talvez se façam guerras por causa disto. Talvez se empossem governos por causa disso. E certamente haverá chantagem, condicionamento e opressão política e ideológica sobre indivíduos. Talvez até chegue a minha vez, ou a sua, caro leitor e cara leitora.
A única defesa possível, parece-me, passa por fazer de todos os cidadãos os primeiros vigilantes deste processo, com duas medidas que, parece, nenhum governo está a tomar. Primeiro, devíamos tornar possível a cada pessoa ter acesso fácil a todos os dados que existam sobre si, permitindo que apague os que entender. Depois devia ser obrigatória na escola uma disciplina de educação para os media, tradicionais e novos, que crie nos jovens uma cultura de defesa da privacidade e de recusa de fake news.
Numa manhã, depois de acordar, sentado na retrete, apercebi-me de que o meu telemóvel detetara onde eu estava. O aparelho mostrava um ícone que liga uma coluna de som que montei por cima do lavatório, sintonizada, via internet, na TSF. Pela primeira vez, eu, escravo do gadget, consumidor viciado em inutilidades tecnológicas, senti-me violado na minha privacidade. “A Apple sabe que estou no WC?! Isto já é de mais!”. Ridículo, de calças para baixo, indignei-me contra a armadilha onde, com alegria, ao longo de anos, me deixei cair...
Uma hora depois, quando saí para o trabalho, o telemóvel avisou-me para desligar as luzes de casa. E eu, a sorrir, agradeci.
A gestão de dados pessoais em larga escala é, portanto, um instrumento de expansão do capitalismo moderno e de luta entre os que querem dominar o capitalismo moderno
As leis de controlo da utilização dos dados pessoais são, portanto, uma tentativa de parar uma enorme maré com as mãos. Vão falhar