Arquitectura eleitoral para a cidadania
Sobre a recente proposta de reforma eleitoral da SEDES/APDQ, é importante o último artigo de Jorge Cordeiro, “Engenharias eleitorais” – vem de um membro do Secretariado do Comité Central do PCP. A oposição comunista à introdução de uma componente de círculos uninominais no sistema proporcional não é nova. O PCP não aprovou a revisão constitucional de 1997. E, no debate de há 20 anos, o PCP mantinha o sistema. O projecto de lei n.º 516/VII, defendido pelo saudoso deputado Luís Sá, só trazia duas novidades: círculo nacional; e menor número de círculos regionais, maiores do que os actuais.
Não tenho espaço para ripostar a tudo. Direi apenas que a nossa proposta traduz profundas convicções, baseadas no inconformismo perante a observação do declínio e no estudo de realidades melhores. A introdução dos círculos uninominais é a chave da reforma, como a Constituição aponta. Muda a cultura de representação, introduzindo um mecanismo robusto de legitimação de baixo para cima que contagia todos os patamares. Há uma maré de cidadania.
A crítica principal de Jorge Cordeiro está aqui: o “argumento (…) de que um círculo nacional de compensação asseguraria sempre a representação proporcional da conversão de votos em número de mandatos é uma patranha. De novo o jogo de aparências. A indução de voto útil na disputa uninominal rearrumará nessa dinâmica e nos critérios mediáticos das disputas unipessoais a intenção do voto, desvalorizará projectos e propostas em nome de protagonistas e ‘messias’. (…) Destes círculos resultarão quase só deputados do PS e do PSD incompensáveis com a actual composição numérica da AR”.
Nada disto. Os círculos uninominais previstos na Constituição não têm nada que ver com os sistemas britânico e francês ou experiências nossas na monarquia constitucional. Estes são sistemas de círculos uninominais exclusivos, sem proporcionalidade. Aqueles são totalmente diferentes, porque submetidos à proporcionalidade fixada pela votação simultânea nas listas. Não decidem a composição do Parlamento, apenas contribuem para ela. Trata-se de um ingrediente complementar, cujo efeito é assegurar o enraizamento da representação na cidadania.
Jorge Cordeiro pode consultar os seus companheiros do Die Linke, antigamente PDS. Em 1994, na segunda eleição após a queda do Muro, o PDS não foi varrido do Bundestag pela regra dos 5% mínimos graças aos círculos uninominais: venceu em quatro (acima do limiar de três), acabando por eleger 30 deputados, com 4,4%.
Seria desonesto negar que os maiores partidos elegem a maior parte dos uninominais. É a lógica matemática: quem é maior tende a ser maior por todo o lado. Mas não é necessariamente assim. Outros partidos podem apresentar candidatos fortes, vencendo aqui ou ali. E há zonas de maior influência de algum partido mais pequeno. Ou seja, partidos não grandes são igualmente aptos a ganhar eleições uninominais. Depende dos candidatos, dos territórios, das campanhas. Nas eleições alemãs de 2017, foi assim com Die Linke, AfD e Verdes. O Die Linke elegeu cinco uninominais – nada mau para quem teve 9,2% a nível nacional.
O argumento da “indução de voto útil na disputa uninominal” também não funciona como Jorge Cordeiro escreve. É inegável que, nos uninominais, tende a haver alguma migração de votos dos mais pequenos para os maiores. Mas a experiência mostra que o voto útil (ou de escolha pessoal) nos uninominais não contamina a votação no partido. Tende até a funcionar ao contrário: quem votou “útil” num candidato vota fielmente no “seu” partido na lista – e esta é que determina a composição percentual do Parlamento. Voltemos às eleições alemãs de 2017: o FDP, que, nos uninominais, teve apenas 7% e não elegeu um só, recebeu 10,7% nas listas e elegeu 80 deputados, 11,3% do Parlamento; e o Die Linke, que, nos uninominais, recebeu 8,6% e elegeu cinco deputados, alcançou 9,2% nas listas, somando 69 deputados, 9,7% do Parlamento. O quadro é melhor do que o nosso: por um lado, o voto útil não prejudica; por outro, o sistema é mais proporcional. Onde é que, em Portugal, um partido de 9,2% dos votos teria 9,7% dos lugares? Cá, obteria cerca de 7,5%.
Há outra razão por que não podemos, na representação proporcional personalizada, valorizar que os partidos maiores ganhem a maior parte dos uninominais. A consequência é elegerem muitíssimo menos pelas listas. Não esqueçamos o fundamental: o sistema é proporcional; e a votação-guia para a composição percentual do Parlamento é a votação nas listas. Nas últimas eleições alemãs, venceu a CDU/CSU, com 33,0%. Nos uninominais, somaram 37,2%, com muitas vitórias: a CSU conquistou todos os 46 lugares da Baviera; e a CDU 185 lugares, do total de 253 que disputou. Mas, em contrapartida, a CSU não elegeu ninguém pelas listas; e a CDU só elegeu mais 15 das listas. Em suma: a CDU/CSU ficou com 246 deputados, 34,7% do Parlamento. Jorge Cordeiro sabe bem que, no nosso sistema, o “prémio” para os mais votados é bem maior. Nas nossas últimas eleições, em 2015, o “prémio” foi de mais 8% de deputados para a PAF e mais 5% para o PS – na Alemanha, só 1,5% para CDU/CSU e 1% para SPD.
Compreendo a desconfiança do PCP diante de reformas eleitorais, face a arremetidas manhosas no passado. Mas é possível fazer uma reforma honesta. Tem de ser feita. É para isso que trabalhamos, na linha da Constituição, procurando aproveitar o debate legislativo de há 20 anos e a experiência alemã, mas querendo fazer melhor, à medida das necessidades e da nossa experiência democrática – por exemplo, a nossa proposta inclui um círculo nacional de compensação e exclui qualquer cláusula-barreira. Seria importante que o PCP revisse a posição. Uma boa reforma eleitoral tem muito a ganhar com o concurso de todos.