CUSTÓDIA PARTILHADA O DRAMA QUE VALEU UM LEÃO DE PRATA A XAVIER LEGRAND
Vencedor do Leão de Prata em Veneza, o filme de Xavier Legrand é um pungente drama familiar de vincada dimensão social
Fixemo-nos no rosto de uma criança, contraído num misto de tristeza e raiva. É sobre esse rosto que a câmara de Xavier Legrand se detém por diversas vezes em Custódia Partilhada (estreia-se hoje), como se filmasse um livro aberto. O seu silêncio conta-nos uma história e a sua postura amedrontada faz-nos querer saber mais sobre o que lhe vai nos recônditos da alma… Quando o filme começa, com a cena exaustiva – e absolutamente necessária – de uma juíza em audiência com os pais dessa criança, e as respetivas advogadas, revelando um contencioso, só sabemos da existência de Julien (o menino interpretado pelo debutante Thomas Gioria) através da leitura de uma carta que este escreveu. Diz ele nesse bilhete dirigido à magistrada que não quer ter contacto com o pai, dando razão ao pedido da mãe para ficar com a custódia dos dois filhos – a mais velha está quase a completar 18 anos, por isso não é abrangida pelas disposições legais. A mulher alega situações de violência doméstica, mas não tem provas que sejam consideradas válidas. Por sua vez, o ex-marido nega tudo e, bem defendido pela sua advogada, reafirma ter direito a estar com o filho, de quem não reconhece a frieza daquela carta.
Com um categórico realismo, Legrand instala a dúvida: esta mulher (Léa Drucker) manipula os filhos ou é o ex-marido (Denis Ménochet) que mente? A decisão da juíza pende para o lado do homem, a quem é concedida autorização para ficar com o miúdo aos fins de semana. A partir daqui, vamos conhecer a conjuntura de uma família desfeita.
Sobre a ambiguidade inicial deste quadro o realizador francês vai trabalhar um drama discreto que, à medida que o tempo passa, se parece mais com um pânico subterrâneo, qualquer coisa que cresce de modo latente. Quer dizer, vamos intuindo através dos comportamentos e sintomas das relações os contornos da verdade, que o filme sublinha com vigor observacional. Por outras palavras ainda, vamos lendo o rosto de Julien, que con- centra a angústia de quem não consegue dormir à noite...
Este é um cinema de autópsia social, sem artifícios, cujo argumento – também escrito por Legrand – ergue com laboriosa atenção e economia narrativa. Não há sentimentalismo forçado, mas há sensibilidade. Não há “injeção” de uma temática, mas há um olhar comprometido com o sofrimento concreto das personagens, nas suas subtilezas psicológicas. E não se pedia mais do que isto numa primeira obra de fôlego; essa honestidade da realização, que nos aproxima de pessoas como nós, mas que ao mesmo tempo nos mantém suspensos, em estudo, à procura da sua natureza.
Mais ainda: com este Custódia Partilhada, que lhe valeu o Leão de Prata (melhor realizador) no Festival de Veneza, Xavier Legrand está inequivocamente associado à melhor tradição do cinema de realismo social, de que os irmãos Dardenne são a grande referência contemporânea. Se dúvidas houver, note-se que a sua curta-metragem anterior, Avant Que de Tout Perdre (2013), funciona como um preâmbulo para Custódia Partilhada, retratando uma mulher que, com os dois filhos, foge do marido.
Falamos, no entanto, de um universo fílmico que não se cinge a essa sua substância e análise social. O gesto de Legrand é singular porque orienta a perceção do espectador com ténues códigos de um filme de terror. Mas não se trata do terror definido como género cinematográfico. É antes aquele que está presente na vida real, sem truques ou técnicas de susto. É aquele que se espelha no rosto do pequeno Julien.
Este é um cinema de autópsia social, sem artifícios, cujo argumento ergue com laboriosa atenção e economia narrativa