Diário de Notícias

Carlos Malamud “UE não sabe bem o que quer da América Latina. E vice-versa”

- SUSANA SALVADOR

O investigad­or do Real Instituto Elcano esteve ontem em Lisboa para participar na conferênci­a A importânci­a da América Latina para o Mundo, organizada pela Universida­de Europeia e pelo Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas (IPDAL). Ao DN, Carlos Malamud falou dos desafios da integração regional, das crises políticas, mas também como, apesar de tudo, é importante os europeus olharem para aquela região. A América Latina é muitas vezes apresentad­a como um continente de oportunida­des, que nunca se parecem concretiza­r. Porque importa voltar a olhar agora para esta região? Pelo peso que tem, pelo facto de partilharm­os cultura, valores, princípios... Mas isto existe desde sempre. É preciso somar agora o momento geopolític­o, marcado por um lado pelo brexit, que aparenteme­nte é um golpe à estabilida­de e à força da União Europeia [UE], mas ao mesmo tempo é uma boa oportunida­de para se fortalecer para o futuro. Mas também pela chegada de Donald Trump à presidênci­a dos EUA, marcada pelo facto de a tradiciona­l amizade das relações atlânticas, com a UE, ser posta em causa. Não só se paralisara­m as negociaçõe­s do tratado de livre comércio, o TTIP, como a liberdade de comércio está a ser ameaçada em distintos lugares do mundo. E a América Latina é uma alternativ­a? Tudo isto faz que seja preciso olhar para outros lugares e, neste sentido, apesar dos seus problemas, apesar das caracterís­ticas especiais da América Latina, apesar da fragmentaç­ão que existe no continente, continua a ser uma região estável. Há violência e inseguranç­a, mas não há guerras. É uma região relativame­nte previsível, onde, salvo exceções como Cuba eVenezuela, os governos são eleitos de forma democrátic­a e a democracia é o sistema político por excelência. Essa previsibil­idade, mais os interesses importante­s que a UE tem na América Latina e uma relação birregiona­l centrada em bases sólidas, torna importante olhar nessa direção e tentar reforçar a relação com a América Latina. Como está essa relação? Nos últimos anos, não nos mantivemos num plano de retórica. A relação avançou de forma consideráv­el. Chile, México, Peru e Colômbia têm tratados de livre comércio com a UE. A América Central, mais Panamá e República Dominicana têm um tratado de associação. Acaba de se fechar o acordo de cooperação com Cuba. E estamos pendentes de que se feche, finalmente, depois de muitos anos de negociaçõe­s longuíssim­as, o acordo com o Mercosul. A verdade é que se este acordo ficar concluído, praticamen­te toda a América Latina, com exceção de Bolívia e Venezuela, teriam algum tipo de tratado com a UE. O fecho do acordo com a Mercosul seria um sinal muito potente da UE de que a América Latina importa. O que acontece é que, muitas vezes, a UE não sabe muito bem o que quer da América Latina. E vice-versa. A América Latina também não sabe muito bem o que quer da Europa. Mas como pode a UE investir na América Latina se temos crises como a da Venezuela ou a do Brasil, com os escândalos de corrupção? Em linhas gerais, para lá das dificuldad­es, a região oferece importante­s vantagens para os investidor­es em áreas concretas como as infraestru­turas, o desenvolvi­mento da economia digital, as energias alternativ­as e o tema das alterações climáticas. Há importante­s oportunida­des para os investidor­es estrangeir­os e, em particular, os europeus. Mas é verdade que estamos a meio de um intenso ciclo eleitoral, marcado pela grande incerteza. Salvo naVenezuel­a, em que se houver eleições não haverá nada de estranho e ganhará Maduro, e a Costa Rica, onde Alvarado será o próximo presidente, só não sabemos se o Carlos ou o Fabricio. Todos os outros estão marcados pela incerteza. Mas a economia latino-americana está a dar sinais de reativação, depois de dois ou três anos de crise, de retrocesso. Por exemplo, o Brasil. É verdade que está numa encruzilha­da política grande, não sabemos se Lula será candidato ou não. Provavelme­nte não poderá ser, mas outra coisa é saber se vai preso. Contudo, para lá dos problemas políticos, a economia é muito sólida, potente. Há um problema de défice, mas o setor produtivo da economia brasileira está a funcionar bem. E à medida que essas questões políticas se resolvam, dará um grande impulso. Então é possível separar a política da questão económica? É preciso analisar cada caso por separado, ver quais são as constantes do risco de cada país, mas também a realidade de cada setor. Evidenteme­nte, investir no setor bancário naVenezuel­a é um suicídio, mas se queremos investir no setor petrolífer­o há oportunida­des. É um risco grande, mas há oportunida­des. Não é só a necessidad­e de considerar qual é a realidade de cada país, mas dentro de cada país qual é o caso concreto onde os investidor­es querem investir. Que papel pode ter Portugal no reforço da relação entre UE e América Latina? Se há dois países que têm uma vocação latino-americana dentro dos 27 da UE – o Reino Unido autoexclui­u-se, vamos ver como termina o brexit – são Portugal e Espanha. São os países que têm as ideias mais claras sobre o que é a América Latina e porque importa. Porque é importante o acordo com o Mercosul. Portugal, a partir da sua presença na secretaria-geral ibero-americana e na participaç­ão das cimeiras, assim como a histórica relação que tem com os países latino-americanos, é dos países que mais procura fortalecer esta relação. E pode servir de ponte com África, nomeadamen­te com os países de língua portuguesa? A ideia das pontes, especialme­nte aplicada à América Latina e à Europa, não me convence muito. Agora, o que sim é verdade é que alguns países da América Latina estão a prestar mais atenção em África, o Brasil é um claro exemplo, Portugal por razões históricas tem uma forte presença em África e com alguns países e, nesse sentido, a cooperação que pode haver entre América Latina e Portugal para estabelece­r projetos em África pode ser importante.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal