Diário de Notícias

A lei, a culpa e a verdade encenadas em tom japonês

Autor de dramas familiares, o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda assina, agora, um policial centrado na investigaç­ão de um crime: O Terceiro Assassinat­o foi consagrado com o prémio de melhor filme japonês de 2017

- João Lopes POR

De que falamos quando falamos de cinema japonês? De uma “coisa” distante, sem dúvida. Falamos, sobretudo, de uma paisagem criativa cuja presença no mercado português foi enfraquece­ndo, a ponto de podermos reconhecer uma evidência banalmente sociológic­a: no nosso país, para o espectador médio, o cinema japonês não existe.

E, no entanto, com sofrida regularida­de, os filmes japoneses vão circulando por aí, porventura continuand­o a mobilizar algumas pessoas para as suas singularid­ades temáticas e estéticas. Podemos até dizer que, apesar de tudo, o nome de Hirokazu Kore-eda (nascido em Tóquio, em 1962) emerge como uma radiosa exceção. Através de dramas centrados nas tensões do espaço familiar – Ninguém Sabe (2004), Andando (2008), O Meu Maior Desejo (2011), Tal Pai, Tal Filho (2013) –, Kore-eda impôs-se como sábio retratista de situações particular­es capazes de ecoar temas universais. Daí o misto de surpresa e fascínio com que acedemos ao seu mais recente filme, O Terceiro Assassinat­o (em exibição), um thriller centrado na investigaç­ão de um crime.

Dir-se-ia que descobrimo­s uma nova filiação para o trabalho de Kore-eda. Através dos seus filmes anteriores, era inevitável vermos nele um legítimo herdeiro do mestreYasu­jiro Ozu (1903-1963): do rigor da composição do espaço à importânci­a dos mais discretos detalhes emocionais, Kore-eda retomava a lição de Ozu, agora observando as famílias do Japão contemporâ­neo.

Face a O Terceiro Assassinat­o, somos levados a evocar outro nome e uma diferente inspiração: Nagisa Oshima (1932-2013) e, em particular, a sua obsessiva desmontage­m dos mecanismos que cruzam a lei e a atribuição da culpa com a aplicação das leis do Estado. Pensamos, talvez, no incontorná­vel Feliz Natal, Mr. Lawrence (1983). Mas vale a pena evocar o prodigioso O Enforcamen­to (1968), crónica sobre a pena de morte que oscilava entre um realismo muito cru e uma perturbant­e dimensão fantástica. Num metódico ziguezague entre as leis do coletivo e os enigmas do individual, Oshima formulava uma interrogaç­ão que, embora num contexto totalmente diferente, surge agora retomada por Kore-eda: até que ponto a definição da culpa nos aproxima da verdade dos factos? Onde está a verdade? As peripécias que fazem mover a história de O Terceiro Assassinat­o são sugestivas. Por um lado, há um crime: logo na cena de abertura, vemos Misumi (interpreta­do pelo veterano Koji Yakusho, um dos mais populares atores japoneses) a matar o patrão; por outro lado, acompanham­os a saga do advogado de defesa Tomoaki Shigemori (Masaharu Fukuyama), apostado em conseguir que Misumi seja castigado com uma pena tão leve quanto possível.

Dir-se-ia que estamos perante um típico policial que desemboca no modelo clássico do filme de tribunal. É verdade que assim acontece. Mas não é menos verdade que, à medida que a história avança, somos tocados pela perturbaçã­o que assalta Shigemori. Por que é que Misumi começa por se assumir como culpado sem atenuantes? E que motivos, legítimos ou obscuros, o levam a ir alterando a sua história cada vez que recebe a visita de Shigemori na prisão?

Entramos no filme pela via tradiciona­l do enigma policial: “Quem, como, onde?” O certo é que, a pouco e pouco, a ambiguidad­e de Misumi vai contaminan­do todos os pontos de vista (incluindo o do espectador). De tal modo que o advogado se descobre protagonis­ta da mais primitiva inquietaçã­o: onde está a verdade? Mais do que isso: quem tem conhecimen­to ou legitimida­de para enunciar uma verdade em que todos se reconheçam?

Na sua condição de obra em aberto, o filme possui um apelo realmente universal que não terá passado despercebi­do aos membros da Academia Japonesa de Cinema: O Terceiro Assassinat­o recebeu seis prémios referentes à produção de 2017, incluindo melhor realização e melhor argumento (ambos para Kore-eda),melhorator(KojiYakush­o) e melhor filme do ano.

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Onde está a verdade? Uma reflexão perturbado­ra no premiado filme de Hirokazu Kore-eda

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