Vanguarda russa
Abriu nesta semana em Paris – para sorte minha que vim cá uns dias – e fica até 16 de julho a exposição Chagall, Lissitzky, Malevich, a Vanguarda Russa emVitebsk 1918-1922. Um pequeno documentário no final do percurso entre pinturas oferece ao visitante o testemunho de Sergei Eisenstein, o grande cineasta soviético, que visitou a cidade hoje na Bielorrússia e que então fazia parte da Rússia comunista (a União Soviética só seria fundada em 1922): “É uma estranha cidade de província. Como muitas outras cidades na região ocidental é feita de tijolos vermelhos. Cheia de fuligem e sombria. Mas esta cidade é especialmente estranha. Aqui as principais ruas têm os tijolos vermelhos cobertos de tinta branca. E sobre um fundo branco, há círculos verdes espalhados. Quadrados cor de laranja. Retângulos azuis. Esta é aVitebsk em 1920. O pincel de Kazimir Malevich tocou as suas paredes de tijolos.”
Eisenstein prestava assim homenagem a Malevich, pai do suprematismo e do movimento UNOVIS (abreviatura em russo de “os campeões da nova arte”), mas na realidade o que nos mostra a exposição no Centro Pompidou é que a revolução artística que aconteceu em Vitebsk, a reboque da Revolução Bolchevique de 1917, só foi possível graças ao empenho pessoal de um outro grande nome das artes, Marc Chagall.
Judeu, como boa parte da população de Vitebsk no início do século XX, o pintor emancipou-se do conservadorismo religioso da família e chegou a viver em França, onde conviveu com a elite artística da época, incluindo o português Amadeo de Souza-Cardoso.
Em 1914, uma curta visita a Vitebsk acabou por se eternizar por causa da Primeira Guerra Mundial e Chagall, entretanto casado e pai, assistiu entusiasmado ao triunfo de Lenine e ao fim do império czarista. Foi nomeado comissário das artes na sua cidade natal, onde quis, a partir de uma escola que já existia, criar algo verdadeiramente apropriado aos tempos revolucionários, como o quadro Avante, Avante (na foto). Para tal desafiou El Lissitzky, que, por sua vez, foi a Moscovo convencer Malevich a participar no projeto. Este último veio, sobretudo, porque passava fome na nova capital bolchevique (que substituíra São Petersburgo) e a mulher estava grávida, conta Angela Lampe, comissária da exposição no Centro Pompidou, em entrevista à revista BeauxArts. Mas em Vitebsk, acrescenta Lampe, Malevich revela-se logo um professor carismático, “venerado pelos alunos e pelos outros professores”, algo que Chagall nunca conseguiu ser apesar do imenso talento que revelou ao longo de uma vida quase centenária (morreu com 97 anos, em Saint-Paul-de-Vence). Na autobiografia O Meu Universo, escrita em iídiche, recorda com carinho a escola de Vitebsk mas recusa-se a dizer “uma palavra que seja sobre os meus amigos e inimigos”.
Chagall acaba por deixar Vitebsk em 1920, e depois de dois anos em Moscovo, desiludido, sai de vez do país, com destino a Paris com uma etapa prévia em Berlim. E se bastante mais tarde, já naturalizado cidadão francês, visitará a União Soviética, não chegará a ir à sua cidade natal, que hoje o venera, mesmo que quase toda a população judia tenha desaparecido na Segunda Guerra Mundial (o próprio Chagall escapou aos nazis deixando França a caminho de Portugal de onde embarcou para os Estados Unidos).
Como se deduz pelo título da exposição no Centro Pompidou, 1923 é um ano de viragem na liberdade artística na União Soviética, no mau sentido, ainda que Lissitzky e Malevich continuem a produzir, Eisenstein venha a realizar O Couraçado Potemkine e Outubro e, mesmo no auge do terror estalinista, Dmitri Shostakovich componha a Sinfonia n.° 5 em Ré Menor. Voltando a Vitebsk. É extraordinário o que ali se passou há cem anos. A introdução por Suzanne Pourchier e Yves Plasseraud a um livro de Claire Le Foll sobre a escola artística de Vitebsk sublinha que a cidade hoje com 300 mil habitantes está na origem das artes plásticas bielorrussas e “igualmente deu o seu contributo à vanguarda russa, à arte judia em gestação e à arte mundial, pois vários dos alunos, uma vez emigrados, adquiriram uma reputação que ultrapassa as fronteiras da Bielorrússia”.
A revolução artística que aconteceu em Vitebsk, a reboque da Revolução Bolchevique de 1917, só foi possível graças ao empenho pessoal de um grande nome das artes, Marc Chagall