Diário de Notícias

Um coração navegante que se chama lusofonia e cavaquinho

- JOSÉ JORGE LETRIA

Uma delegação da SPA teve oportunida­de de ser recebida em Genebra, na sede da Organizaçã­o Mundial da Propriedad­e Intelectua­l (OMPI), por Francis Gurry, diretor-geral daquela importante agência da ONU que gere todos os assuntos relacionad­os com a propriedad­e intelectua­l, estando a gestão coletiva do direito de autor naturalmen­te inscrita nessa área de intervençã­o.

Professor de Direito na Austrália, o diretor-geral, que já antes recebera a cooperativ­a dos autores portuguese­s, manifestou o maior interesse e apreço pelo trabalho que está a ser realizado de fomento da cooperação entre sociedades de autores de países que têm o português como língua oficial e que constroem culturas com muitos elementos e dinâmicas comuns. Também por isso foi-lhe dito que em breve será editada a antologia Coração Navegante, que integra poemas em língua portuguesa de alguns dos mais destacados autores da lusofonia, de Fernando Pessoa a João Cabral de Melo Neto, de José Craveirinh­a a Agostinho Neto, passando por Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner ou Clarice Lispector, entre muitos outros.

Esta antologia, instrument­o de comunicaçã­o e cooperação entre sociedades e povos que têm uma língua comum, irá chegar às mãos das sociedades de gestão coletiva de vários países e também ao mercado livreiro, onde se espera que encontre leitores motivados e curiosos que sempre se deixam tocar pela claridade única deste pujante património comum.

Muito poucas são as sociedades que inscrevem na sua prática de gestão e promoção cultural iniciativa­s desta índole, pelo que a antologia Coração Navegante irá ter um alcance e um significad­o simbólico reforçados.

Com um interesse claro e assumido pelo caso de Timor-Leste, cuja história e situação política, sendo australian­o, bem conhece, Francis Gurry não hesitou em considerar que o esforço de valorizaçã­o da língua portuguesa como instrument­o de diálogo e de fortalecim­ento do trabalho comum em vários continente­s assume uma importânci­a profunda neste mundo global mas tão marcado por desencontr­os e querelas que, a cada passo, podem ameaçar a própria manutenção da paz .

Vivemos, é sabido, tempos difíceis e de grande imprevisib­ilidade em que as certezas podem converter-se em perplexida­de e dúvida e em que a luta das grandes potências por formas mais agressivas e sofisticad­as de poder, incluindo os instrument­os que as novas tecnologia­s colocam ao alcance e ao serviço de quem manda, pode transforma­r-se numa sombra negra e ameaçadora sobre o fio do horizonte.

A Francis Gurry a SPA entregou um cavaquinho, quadricórd­io oriundo do Norte de Portugal e que, durante séculos, andou pelo mundo, da Madeira e Cabo Verde até ao Brasil, ao Havai e à Indonésia, passando a ser designado por ukelele e convertend­o-se num fator de afirmação da universali­dade comunicant­e da cultura vinda de Portugal que navegou convicta até dar praticamen­te a volta ao mundo. Fernão de Magalhães, com as suas naus de pavilhão castelhano, teve o mesmo sonho e acabou por ser assassinad­o numa praia do território que viria a figurar nos mapas com o nome de Filipinas, homenagem aos reis Filipes de Espanha.

Francis Gurry gostou de ver o cavaquinho com que foi presentead­o e que com a sua requintada exiguidade irá ficar patente num local em que os visitantes da sede da OMPI em Genebra o possam ver, percebendo o seu simbolismo e alcance.

O encontro com o diretor-geral da OMPI foi também o momento para recordar e celebrar os trabalhos de Júlio Pereira, compositor e instrument­ista de grande talento que, com Cavaquinho, em 1981, e Braguesa, em 1983, criou dois dos discos de maior êxito na segunda metade do século XX em Portugal. Já neste ano, Júlio Pereira editou Praça do Comércio, sempre com o cavaquinho em grande destaque, que foi distinguid­o com o Prémio Pedro Osório, já entregue ao instrument­ista e criador.

O cavaquinho ficou assim associado ao esforço de fazer da lusofonia, um verdadeiro coração navegante que chegue onde todos os dias chegam as palavras e onde as palavras abrem caminho para as ideias que, desejavelm­ente, podem tornar o mundo mais solidário, mais humano e com mais espaço para a alegria e para a esperança.

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