Diário de Notícias

TRANSGÉNER­OS AQUI SÓ HÁ LUGAR PARA MARIAS-RAPAZES

Identidade. Meio milhar de pessoas mudaram o nome e o sexo no registo civil desde que a lei portuguesa o permitiu, em 2011. São transgéner­os, não se reconhecem no corpo com que nasceram, o que em geral manifestam cedo. Mas as mulheres trans são mais repri

- CÉU NEVES

Quem não se lembra da coleção Os Cinco, de Enid Blyton? Da Ana, do Júlio, do David, da Zé e do cão Tim? Quem era a personagem que queríamos ser? A Zé, claro. A maria-rapaz. Imaginem se fosse o David ou o Júlio a serem mais femininos. Teriam o mesmo sucesso? Se nem sequer existe um nome que não seja pejorativo para o descrever, por exemplo, “manuel-rapariga”. “Não teria a mesma aceitação”, responde quem já viveu nos dois lados: feminino e masculino. “Ser transgéner­o e mulher resulta numa dupla discrimina­ção.”

“Mesmo quando estudava, tinha uma imagem mais feminina do que masculina, mentiria se dissesse que não era tratada de forma diferente. Na primária, no ensino preparatór­io, os miúdos são cruéis e dizem o que não queremos ouvir”, recorda Letícia Santos, 27 anos, cabeleira, mulher de traços delicados que nasceu num corpo de homem – um transgéner­o feminino. Registou a nova identidade em 2011, no primeiro ano da lei da identidade de género. Tinha começado a adequar o corpo à mente, contando sempre com o apoio da família. O que não lhe evitou alguns constrangi­mentos. Esta é uma das razões porque dá a cara, sobretudo para “dar força” a quem esteja na mesma situação. Uma postura que se aplica aos transgéner­os com quem o DN falou para esta reportagem.

Letícia trabalhou em vários salões até ser sócia do seu próprio cabeleirei­ro, o L&A Studio, em Matosinhos. Um mundo onde não se sente discrimina­da, é diferente quando está noutros ambientes. “Uma mulher transgéner­o é sempre muito mais discrimina­da do que um homem transgéner­o, desde logo porque a pessoa quando começa a tomar testerona fica quase irreconhec­ível. Uma mulher é mais difícil, há a barba, os pelos, as costas largas, a voz...”

É a questão da imagem que também marca, referem trans e investigad­ores. E, em geral, os transgéner­os querem apagar o passado com o qual não se identifica­m, o que é mais fácil para os masculinos que preferem não dar a cara. São as mulheres trans que mais aparecem, são mais ativistas, a exemplo do que acontece na sociedade.

“A história do ativismo trans em Portugal começa em 2002 e é feita sobretudo por mulheres trans. Provavelme­nte por serem elas as mais discrimina­das, sentem uma maior necessidad­e de reivindica­ção de direitos e de procura de apoio entre pares. Até há bem pouco tempo, no nosso país, eram apenas mulheres as pessoas trans visíveis. Os homens trans iniciaram esse caminho muito depois”, explica a socióloga Sandra Saleiro (ver entrevista).

No nosso país, existem mais transgéner­os masculinos do que femininos, uma realidade que nos destaca a nível internacio­nal. Entre 2011 e 2017, 514 pessoas mudaram de nome e sexo e 56% para masculino, segundo os dados fornecidos ao DN pelo Ministério da Justiça. O primeiro ano da lei registou 79

“A história do ativismo trans em Portugal começa e m 2002 e é feita sobretudo por mulheres trans. Provavelme­nte por serem as mais discrimina­das, sentem maior necessidad­e de reivindica­ção de direitos e de procura de apoio entre pares”

O Ministério da Justiça indica que no ano passado foram 139 as pessoas que mudaram de sexo e de nome – 86 foram de feminino para masculino –, tendo sido batidos todos os recordes

Portugal tem mais trans masculinos do que femininos, ao contrário dos outros países

O projeto de lei do governo com as mudanças nos requisitos para a identidade de género no registo civil tem propostas no mesmo sentido do PAN e do BE

Além dos transgéner­os, a nova lei visa quem nasce com caracterís­ticas sexuais femininas e masculinos (intersexo). Essas crianças só devem ser operadas quando se manifestar a sua identidade de género, a não ser que corram risco de saúde

alterações, desceu para 45/50 nos anos seguintes, voltando a subir em 2015 (72), mais 14 em 2016. O ano passado bateu o recorde com 139 destes registos, dos quais 86 homens. O transgéner­o feminino mais velho tinha 68 anos quando mudou o registo civil, no caso dos homens, 64 anos, ambos em 2011. Ativista e feminista Júlia Pereira lembra-se de si com uma “imagem andrógina” e que cultivou desde os 12/13 anos. O que para os outros, em especial os colegas de escola, não batia bem com o que esperavam de um menino alto e forte. As bocas e as piadas que ouvia eram por isso, mas também porque para eles era “homossexua­l”. Culpa da associação que se faz entre identidade de género e orientação sexual, quando são conceitos distintos. Os transgéner­os são na maioria heterossex­uais, gostam do sexo oposto ao qual se identifica­m, tal como a população em geral.

Conta Júlia: “No ensino secundário usava o nome masculino e comecei a fazer o tratamento hormonal, posso dizer que sofri bullying.” Passou a chamar-se Júlia já na faculdade, nome e sexo alterados nos documentos em 2011. Diminuíram as provocaçõe­s, mas sentiu um tratamento desigual. “Tinha uma imagem concordant­e com o meu nome mas sentia que era uma voz secundariz­ada por ser mulher.” Situação que lhe provoca um misto de sentimento­s: felicidade por viver na sua pele, infelicida­de ao perceber que é o género masculino que tem o poder.

“Inicialmen­te, quando abria a boca era motivo de chacota por ser mais feminina, agora já não é por chacota mas por ser mais uma mulher.” “Também depende do espaço onde estou”, sublinha Júlia. Sente que também alterou o comportame­nto, por exemplo, não passar em zonas mais escuras. Na participaç­ão ativa, sentiu sobretudo desigualda­de nas reuniões internacio­nais, o que fez questão de denunciar. “No ativismo LGBTI em geral, há uma maior participaç­ão de mulheres do que de homens, mas quando chega à tomada de decisão, a situação inverte-se, há mais homens.”

Júlia tem 28 anos, está a fazer o mestrado em Estudos Brasileiro­s, descreve-se como “ativista trans e feminista”. Esteve ligada à associação ILGA, LGTBI (Intervençã­o Lésbica, Gay, Bissexual, Transgéner­o e Intersexo), cofundou a Ação para a Identidade (API). Que defende, em particular, os interesse dos transgéner­os e dos intersexo (pessoas cujas caracterís­ticas sexuais incorporam ambos ou certos aspetos da fisiologia masculina, como da feminina). Foi candidata pelo Bloco de Esquerda pelo círculo de Setúbal nas últimas legislativ­as. Ilhas menos preparadas André Pires tem 20 anos, tirou o curso de cozinha e pastelaria na ilha de São Jorge, Açores. Percebeu aos 8 anos “que não se sentia confortáve­l com roupa feminina”. Começou a vestir-se “à rapaz”, sobretudo na escola, já que o pai não “lidou bem com a situação”.Também se lembra da avó o “obrigar” a brincar com bonecas. Gostava tanto de brinquedos habitualme­nte identifica­dos com as raparigas como com os rapazes. Adorava a plasticina e o corte e cola.

Em adolescent­e era a maria-rapaz, a quem se achava graça. Em adulta, tornou-se incómodo. Faz três anos em Setembro que veio para Lisboa. “Em São Jorge é muito mais difícil, mais preconceit­uoso em tudo o que envolve as questões de género e sexuais. Ainda assim, não se lembra de grandes provocaçõe­s. “É pior ser transexual feminino do que masculino. Em primeiro, há medo por parte dos homens em geral, sentem que está em causa a sua masculinid­ade, há muita falta de informação. E os próprios transgéner­os têm medo em assumir porque há um maior estigma, são confundido­s com os travestis, o que é motivo de gozo.”

Vive em Lisboa, em casa da irmã, é subchefe de cozinha, e só depois de ter a garantia de emprego iniciou o processo de transição de feminino para masculino. “Não há qualquer tipo de apoio nos Açores. Sabia que só aqui podia falar no assunto. Decidi reprimir o que sentia até estar a trabalhar, até ser independen­te.” Contactou há um ano a ILGA, que o encaminhou para o Grupo de Reflexão e Intervençã­o Trans (GRIT). Ainda não começou o tratamento hormonal nem mudou de nome. É masculino nas roupas e nos gestos. “Toda a gente me trata por rapaz, inclusive a família.” Perder competênci­a técnica Daniela Bento é responsáve­l pelo GRIT desde 2015, depois de Júlia Pereira. Foi quem sugeriu o tema para esta reportagem, quando noutro trabalho deu um exemplo da diferença de tratamento quando passou a ter uma imagem mais feminina. “Sempre gostei de carros, de perceber como funcionam, agora, quando vou a uma oficina explicam-me tudo como se não percebesse nada do assunto”, disse na altura. Continua a sentir o mesmo: “Passei por muitas situações como mulher que nunca me ocorreram enquanto homem. Parece que perdi competênci­a técnica por ter nome de mulher. Além de que as mulheres têm mais problemas de assédio no trabalho.” Tem 31 anos e é engenheira de software.

Acredita que é por sentirem que têm menos direitos que as mulheres trans intervêm mais no espaço público: “Ainda há pouco tempo tivemos essa discussão no GRIT, porque é que é mais fácil ver mulheres trans do que os homens? Tem que ver com a questão social, por sentirem mais discrimina­ção, mas também pode ter que ver com uma maior capacidade de auto-organizaçã­o.”

As organizaçõ­es que Daniela e Júlia representa­m têm acompanhad­o as alterações à Lei da Identidade de Género, que serão votadas na sexta-feira (ver caixa). Consideram que é um passo importante embora não vá tão longe quanto gostariam. Entre as críticas que fazem à nova legislação, há duas que consideram muito importante­s. Aplica-se apenas aos cidadãos nacionais, excluindo os imigrantes. Não contempla os transgéner­os não-binários, ou seja, os que não se identifica­m nem com o género masculino nem com o género feminino. É o caso de Daniela Bento, que acabou por se registar como mulher porque a lei exige que escolha homem ou mulher. Outra vida bem mais tarde Francisca Solange Marques, 59 anos, e Andreia Barbosa, 44 anos, adequaram muito mais tarde o corpo com que nasceram (masculino) ao que sentiam ser

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20 anos › subchefe de cozinha “É pior ser trans feminino do que masculino....
JÚLIA PEREIRA 28 anos › ativista e a fazer mestrado “Tinha uma imagem concordant­e com o meu nome, mas sentia que era uma voz secundariz­ada por ser mulher.” ANDRÉ PIRES 20 anos › subchefe de cozinha “É pior ser trans feminino do que masculino....
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