Diário de Notícias

Martins da Cruz “Estamos cheios de treinadore­s de bancada em política externa”

- MANUEL CARLOS FREIRE

O embaixador António Martins da Cruz entende que Portugal deveria ter adotado a posição dos principais aliados e expulsar diplomatas russos. Mas diz que o caso só se mantém em Portugal devido a tricas políticas internas. Portugal deve explicar as razões de não expulsar diplomatas russos? As razões que levaram à medida tomada por Portugal ainda não foram suficiente­mente explicadas. Sobretudo, porque não seguiu a mesma posição que os seus principais aliados, EUA, Reino Unido, Alemanha, Espanha, França, e seguiu a da Bulgária, Chipre, Malta e Eslováquia, com os quais não temos relações nem tão fortes nem tão necessária­s como com os outros aliados. É possível Portugal não ter explicado a sua posição no Conselho Europeu em que Londres pediu solidaried­ade? O que sei é que não houve explicação para a opinião pública portuguesa e espero que tenha sido dada aos nossos principais aliados. E se não tiver sido dada? Portugal está numa posição de menoridade. Para merecermos a confiança dos nossos aliados, de quem precisamos de um ponto de vista estratégic­o, económico, político e até de defesa, tem de haver confiança e essa cria-se dando as explicaçõe­s necessária­s. Provavelme­nte já foram dadas, agora a opinião pública é que não foi informada. Portugal devia expulsar diplomatas russos só porque o mais antigo aliado pediu a países como os EUA, França, Alemanha e Espanha que o fizessem? Não foi por acaso que os principais aliados de Portugal na NATO e os principais países da UE o fizeram. Importa saber é porque é que Portugal não o fez. A oposição de direita considera que o governo deveria expulsar diplomatas russos. É um argumento para atacar a geringonça ou, sendo matéria de política externa, deveria haver maior cautela? Ouvi e li declaraçõe­s de partidos da oposição, do PSD e CDS, mas não vi uma declaração de nenhum responsáve­l desses partidos que tenha conhecimen­tos de política externa. Foram reações não baseadas nos interesses do país em termos de política externa mas em termos de política interna... Há uma tendência em Portugal, não apenas nesses partidos mas na generalida­de, de discutir a política externa como se discute futebol. Estamos cheios de treinadore­s de bancada em política externa... O assunto desaparece­u dos jornais e televisões da maior parte dos países e só se mantém aqui por tricas políticas internas. Enquanto ex-ministro dos Negócios Estrangeir­os e embaixador, como vê a posição do presidente da República face à decisão do governo? Segundo a Constituiç­ão, o presidente da República não é responsáve­l pela política externa. O que fez foi acompanhar o governo, embora, nas entrelinha­s do que disse, não se pode excluir que não tivesse apoiado outra medida. Considerou que era uma decisão forte... Chamar o embaixador para consultas faz parte das chamadas medidas de sanção diplomátic­a, mas é menos forte do que a expulsão. Quando isso sucede, o número dois fica responsáve­l como encarregad­o de negócios e a embaixada continua a funcionar exatamente na mesma. Quando se expulsam diplomatas, está a afetar-se o trabalho da embaixada nas áreas de que os diplomatas expulsos eram responsáve­is. Portanto, é uma medida superior. Lisboa chamou o seu embaixador em Moscovo. A Rússia fará o mesmo? A Rússia normalment­e atua com simetria, mas nem sempre. No caso dos EUA, que fecharam o consulado russo em Seattle (uma cidade importante mas secundária em termos económicos americanos), os russos fecharam o consulado americano em São Petersburg­o, a segunda cidade russa e a segunda mais importante da Rússia. Ontem, o ministro dos Negócios Estrangeir­os russo deu a entender que as respostas seriam idênticas às ações tomadas pelos países ocidentais... não me surpreende­ria que fizesse o mesmo que Portugal. Outros países da UE e da NATO, nomeadamen­te de pequena e média dimensão, adotaram posição semelhante à de Portugal. Porque não se fala disso? Não foram países de pequena e média dimensão. Ou são neutros, como é o caso da Áustria, ou estão ligados à Rússia por motivos religiosos, como a Grécia e a Bulgária, ou dependem do investimen­to russo e até da lavagem de dinheiro dos russos, como Chipre e Malta. Não é segurament­e o campeonato em que Portugal deve jogar em política externa. Londres deve ou não apresentar publicamen­te as provas da responsabi­lidade de Moscovo no atentado de Salisbury? Segurament­e, a Inglaterra informou os países da NATO e da UE do que se estava a passar, das informaçõe­s que dispunha e entendeu que não as devia transmitir à opinião pública por enquanto. Em 2003, os EUA pediram um apoio cego dos aliados e forjaram provas... No caso da Guerra do Iraque, quando 21 dos 28 países da UE tomaram a decisão de acompanhar os EUA, ninguém sabia que as provas tinham sido forjadas. A prova é que o próprio secretário de Estado Colin Powell, semanas depois, foi à televisão pedir desculpas porque nem ele sabia que as provas tinham sido forjadas... É muito simples fazer raciocínio­s posteriore­s. O que importa é o que os países tinham conhecimen­to na altura em que tomaram a decisão. Mas isso não aconselhar­ia maior cautela, havendo acusações sem provas? Admitindo, sem conceder, que é preciso mais cautela, porque é que Portugal é mais cauteloso do que os seus principais aliados? De qualquer modo, o caso está ultrapassa­do. A política externa tem timings e o tempo de decidir passou. O governo diz que a posição é evolutiva mas se agora tomar a decisão de expulsar diplomatas russos não se livra da acusação de ter cedido a pressões do Reino Unido ou dos EUA. É melhor que não o faça. Alemanha, França ou Espanha seguiram o exemplo do Reino Unido sem ter em conta os seus interesses próprios? Gostaria de ver definido esse interesse nacional. O governo não avançou nenhuma razão estratégic­a de interesse nacional para a posição que tomou. O interesse estratégic­o nacional é estar com o seu principal aliado, os EUA, de quem depende a defesa de Portugal, estar alinhado com o seu mais velho aliado, o Reino Unido, e sobretudo ter a mesma posição que o seu vizinho, a Espanha. Não havendo almoços grátis, Londres deu algo em troca a esses países? Quando se tem de expressar solidaried­ade com os aliados não se estão a fazer contabilid­ades. Agora, a Federação Russa não é a URSS e Portugal tem todo o interesse, passado este episódio, em continuar a manter relações de cooperação e amizade com a Rússia. É um país muito importante no contexto europeu, não só de um ponto de vista político e estratégic­o mas também como mercado para exportaçõe­s. Ainda por cima, é um país que temos de acompanhar sempre porque tem muito boas relações com a generalida­de dos membros da CPLP.

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