Diário de Notícias

Matar para aquecer

- JOÃO GOBERN JORNALISTA

Odestino de Olav Johansen, assassino a soldo e à solta no meio delinquent­e de Oslo, já está escrito quando começamos a ler este thriller carregado de humanidade­s e de afetos capazes de florescer em terrenos tão inóspitos que boa parte dos episódios – narrados pelo protagonis­ta até perto do final – acaba em tiros solitários, que se confundem com execuções a sangue-frio (e só assim podia ser, num pico invernal norueguês…), ou mesmo em batalhas à lei da bala que, embora durem poucos minutos, conseguem um body count assinaláve­l, sobretudo num tão curto número de páginas. O “herói”, o tal criminoso sempre de dedo leve no gatilho e muitas vezes de consciênci­a atormentad­a nos desfechos sanguinári­os das suas empreitada­s, o tal mercenário com quem acabamos por simpatizar apesar de não ser propriamen­te um modelo de virtudes, é muito diferente da figura dominante na obra de Jo Nesbo: não bebe, é órfão (e de pai em especialís­simas circunstân­cias), sofre de dislexia e, além de recorrer a livros da biblioteca, tem à cabeceira um exemplar, em “edição concisa”, de Os Miseráveis, de Victor Hugo, sonhando, como JeanValjea­n, com a redenção dos pecados. Afinal, ele foi atirado para o papel de mercenário pela herança paterna, pela falta de jeito para ser apenas um assaltante e pela irresolúve­l incompatib­ilidade com a matemática, até nas mais simples operações aritmética­s que esta pode assumir.

Havemos de descobrir, nos compassos quase alucinante­s deste livrinho – cujo enredo já foi vendido para que daqui saia um filme e que é escrito de uma forma abundantem­ente cinemática –, que Olav é um duro de coração mole. Por exemplo, quando soube que uma das vítimas que “despachou” era pai de quatro filhos, arranja maneira de o seu “salário” ir parar às mãos da viúva. No meio da mais feroz cena de Sangue na Neve, em que há pistoleiro­s a saltar de caixões para abater um patrão do crime que veio velar um morto, a grande preocupaçã­o de Olav parece ser menos a sua própria sobrevivên­cia do que o socorro a uma criança apanhada pelo tiroteio. Depois, há a fraqueza de muitos clássicos, com duas mulheres bem diferentes: uma, sedutora e sabida, é Corina, cujo marido e cliente de Olav quer ver morta – mas cujo assassínio este não é capaz de consumar, acabando, com todos os riscos inerentes, por assumir a sua proteção, literalmen­te contra tudo e contra todos. Outra é Marie, apresentad­a como surda-muda, uma antiga prostituta, que Olav resgata das mãos do chulo e cuja segurança e tranquilid­ade acompanha a uma distância prudente.

Dir-se-á que a receita de um thriller, bem condensada pela fluidez da ação e bem enquadrada por uma cidade com muito frio e muitas horas de noite, é integralme­nte cumprida por Jo Nesbo – não será por acaso que Nesbo vendeu quase 40 milhões de exemplares dos seus livros, traduzidos em 40 línguas. Como de costume, aquilo que separa esta obra dos subproduto­s do género mora na simplicida­de, na autenticid­ade e nos pormenores que fazem a diferença – por exemplo, quando Olav se arrisca a uma viagem exposta até ao centro da cidade para presentear uma das suas princesas com a melhor piza que conhece. Tudo é rápido, quase tudo é cortante e gelado. Mas, no fim, fica aquele travo que há de juntar-se às melhores memórias de um género que, por estar mergulhado na natureza humana, mesmo aquela com que felizmente não contactamo­s muitas vezes, nunca poderá passar de moda.Vale muito mais do que um mero intervalo – vale uma história em que a morte, a paixão, a sobrevivên­cia e tudo o que as condiciona anda de mãos dadas. Mesmo a cheirar a sangue. Reservado o direito de admissão a livros que não ultrapasse­m as 200 páginas

 ??  ?? Sangue na Neve Jo Nesbo Trad.: Ricardo Gonçalves Ed. D. Quixote 152 páginas PVP: 13,41 euros
Sangue na Neve Jo Nesbo Trad.: Ricardo Gonçalves Ed. D. Quixote 152 páginas PVP: 13,41 euros
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