Diário de Notícias

Julgar na coutada do macho ibérico

- PAULO TAVARES

Pouco do que a socióloga Isabel Ventura conclui no estudo sobre decisões judiciais em casos de violação tem real capacidade para surpreende­r. Ao ler algumas das passagens citadas nesta edição, recuperamo­s notícias antigas e casos esquecidos. No fundo, o que este trabalho faz é sistematiz­ar e dar um enquadrame­nto científico a algo que conhecemos há muito.

A investigaç­ão, assente na análise de decisões judiciais desde o século XIX até à atualidade e na forma como vítimas e agressores são vistos pela sociedade e pela magistratu­ra, conclui que os juízes têm uma desconfian­ça quase sistemátic­a das vítimas, o que conduz ao silêncio da mulher ou do menor vítima de violação e à impunidade de quem agride.

Isabel Ventura afirma ainda que não é possível identifica­r uma linha comum na forma como a justiça lida com estes casos, ficando cada processo à mercê das crenças e dos entendimen­tos pessoais de cada juiz. Como é óbvio, nenhuma decisão de um juiz é absolutame­nte asséptica e nenhum sistema de justiça pode ambicionar a absoluta objetivida­de de sentenças e acórdãos. Ainda assim, o que vemos descrito neste estudo vai muito para lá do aceitável.

Depois, e aqui está a parte deste estudo que nos deveria levar a refletir enquanto comunidade, a socióloga sublinha que a culpabiliz­ação e a desconfian­ça em relação à vítima é sobretudo uma construção da sociedade e não um exclusivo da magistratu­ra. “Ainda temos muito para avançar”, diz Isabel Ventura em entrevista à jornalista Rute Coelho. Não é aceitável que o retrato que vemos refletido nestas decisões judiciais, de um país que tem uma imagem distorcida do que é uma vítima de violação ou um agressor, passe em claro e não obrigue a parar para pensar. Num primeiro momento, a própria magistratu­ra deve debater uma das recomendaç­ões deste trabalho: a especializ­ação neste tipo de crimes, com tribunais ou pelo menos juízes dedicados a julgar crimes de violação. Enquanto sociedade, devemos isso às vítimas.

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