Porque é que se diz que Manuel Reis foi um libertador? E porque é que isso parece encanitar tanto pessoas que provavelmente não negariam esse elogio a Herman e Esteves Cardoso?
costumeiros complexos de inferioridade com a capital e o que se identifica com as suas “elites”); a de que é ridículo ver em estabelecimentos noturnos uma influência cultural e ideológica; e, sobretudo, muita ignorância (peço desculpa, é a palavra) quanto aos factos e ao fenómeno em relação ao qual pretendem desenganar os outros.
Quando se afirma que Manuel Reis criou um lugar onde os excluídos eram acolhidos e festejados e há quem responda, com mofa, que a porta do Frágil deixava ficar muita gente de fora e portanto era ela própria um fator de exclusão, faz-se, voluntariamente ou não, uma confusão entre conceitos: o de exclusão social e de critérios de admissão. Se o Frágil deixava muita gente de fora? Sim, deixava. Ao contrário do Lux, que pelas suas dimensões todas as noites admite milhares de pessoas e cobra entradas, o Frágil era um bar muito pequeno, não poderia admitir toda a gente. Mas o critério usado à porta nada tinha a ver com poder pagar (não havia “preço de entrada” nem cartões de consumo mínimo e podia-se ficar lá uma noite inteira sem beber nem ninguém chatear) nem tão-pouco, como se retira de muito do que se tem escrito e dito, de se ser “importante” ou parte de “uma elite reconhecida”. Sei disso por experiência: a primeira vez que entrei no Frágil, em 1983, tinha 19 anos e ia com amigos da minha idade. Como quase toda a gente da minha geração, tinha muito pouco dinheiro para gastar (em bebidas ou outra coisa qualquer) e decerto não tinha “um nome”. Era uma miúda de Vila Franca que gostava de um determinado tipo de música que na minha terra e mesmo na minha faculdade lisboeta ninguém conhecia (e que descobrira a ler MEC e a ouvir os programas de António Sérgio), de se vestir e pentear de modo que ofendia a maioria. No Frágil e noutro bar contemporâneo do Bairro Alto, o Rock House – com uma clientela mais jovem e mais ligada à música e que foi a minha porta de entrada para esse outro mundo –, descobri lugares onde era bem-vinda e estava segura, onde ninguém me chateava pelo meu aspeto, onde não havia marialvas nem julgamentos moralistas e onde a expressão da individualidade era considerada uma forma de arte, em oposição à visão coletivista que imperava na época no país (e em alinhamento com o discurso pós-moderno “lá de fora”).
Aí conheci o liberalismo nos costumes – o Frágil foi o primeiro lugar onde vi homens beijar homens e mulheres beijar mulheres como “normalidade” – e pessoas de idades e origens (sociais e geográficas) muito diferentes, unidas por uma rebeldia face ao convencional e conservador. Descobri um país que só sonhara poder existir. Como eu, fomos muitos, de muitos lados de Portugal, a viver essa experiência libertadora, esse ensaio geral para a vida que queríamos ter, para quem queríamos ser. E levámos isso connosco para todo o lado, para sempre.
Teríamos chegado aqui, ao Portugal de hoje, sem o Frágil e sem Manuel Reis? A questão não é essa, mesmo se não lhe podemos responder. A questão é se se pode negar que houve um lugar onde aquilo que hoje é consagrado pela lei foi a lei muito muito antes; se se pode negar que criar essa possibilidade correspondeu a uma visão do futuro e do bem, uma influência e um exemplo que são história.