Diário de Notícias

Sexismo decide em muitas sentenças de casos de violação

A socióloga Isabel Ventura analisou centenas de acórdãos de violação e descobriu sexismo em muitas decisões

- RUTE COELHO

A socióloga IsabelVent­ura construiu uma história jurídico-legal do crime de violação em Portugal, desde o século XIX até à atualidade. E o retrato que mostra no livro Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História daViolação Sexual não é abonatório para a classe judicial. A magistratu­ra que julga os crimes sexuais é descrita como sendo desconfiad­a da vítima, levando ao silêncio da mulher violada e promovendo a “impunidade de quem agride”.

Isabel Ventura concluiu que em casos de crimes sexuais a prática mostra que cada juiz sua sentença. “As práticas legais nos tribunais apresentam-se heterogéne­as e dependente­s das crenças e entendimen­tos pessoais de cada magistrado/a”, escreve no livro que escreveu a partir da sua tese de doutoramen­to. Essas crenças influencia­m decisões. Por isso defende que os magistrado­s deviam ter formação especializ­ada. Uma ideia que tem acolhiment­o. “Há um procedimen­to-base que deve ser seguido para avaliar estes crimes e por isso é que a especializ­ação faz sentido”, aponta a penalista Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito de Lisboa (citada no livro).

A socióloga diz na obra que há uma imagem que viaja através dos séculos em Portugal : “A do corpo feminino que seduz e que é fonte de fraqueza masculina.” Segundo IsabelVent­ura, essa imagem ainda está muito presente. “(...) Como quando em 2000 um tribunal diminui a pena a um jovem de 17 anos que violara uma criança de 7, por considerar que a mesma havia contribuíd­o para o crime ao pedir ao rapaz para a levar na sua bicicleta”. Acórdão não muito distante da mentalidad­e expressa num do Supremo, de 1989, alusivo a duas turistas violadas no Algarve que entraram na “coutada do macho ibérico”. IsabelVent­ura cita estudos que provam a denúncia bastante reduzida destes crimes por oposição à realidade em países europeus. Participaç­ões a subir Uma realidade que poderá estar a mudar. De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna apresentad­o na quinta-feira o crime de violação teve mais 73 participaç­ões em 2017 do que no ano anterior: de 335 casos denunciado­s passou-se para 408 casos reportados às autoridade­s. Na categoria de crimes contra as pessoas baixaram os crimes de abuso sexual de crianças (menos 42 casos, de 979 queixas em 2016 para 937 em 2017) e o de violência doméstica contra cônjuge (-174 casos, de 22 773 queixas para 22 599 denúncias em 2017).

No entanto, estes dados não mostram a realidade. Para a juíza Clara Sottomayor, do Tribunal Constituci­onal, “há muito poucas queixas por violação em relação ao número real de crimes. As cifras negras ainda têm um grande peso num crime que continua a ser semipúblic­o enquanto o de abuso sexual de crianças é público”.

Clara Sottomayor é citada no livro por observar que “a violação é o único crime no qual se discute a questão do consentime­nto e da re- sistência da vítima, o que facilita a discrimina­ção de género na aplicação legal”. A juíza sublinha essa ideia: “Quando uma pessoa foi vítima de roubo não se lhe pergunta se consentiu ou resistiu. Protege-se mais a propriedad­e do que a dignidade das mulheres.” Mas admite que nunca trabalhou numa secção penal. “Quando entrei para o Supremo foi para a secção cível. O que conheço é de acórdãos que li em trabalho de investigaç­ão.”

A juíza Cristina Esteves, em funções no tribunal de instrução criminal, em Cascais, e presidente do movimento Justiça e Democracia, já julgou casos de violação. “No passado acho que havia muitos casos abafados, hoje não. Atualmente tem havido condenaçõe­s de violadores a penas de prisão efetivas”, disse ao DN. Ainda assim, admite que se depara mais com “processos de abuso sexual de menores do que com casos de violação clássicos”.

Para a juíza, o maior problema está na “falta de apoio psicológic­o

Relatório Anual de Segurança Interna, referente a 2017, mostra que subiram queixas por crimes de violação. Mas, mesmo assim, estarão longe da realidade, diz juíza Clara Sottomayor

que é dado a agressores sexuais e vítimas, no primeiro caso para sua ressociali­zação, no segundo, para ultrapassa­r um trauma grande que destrói a vida”. A magistrada recordou um caso de violação – que chegou a tribunal dez anos depois dos factos porque o violador tinha fugido do país – que julgou. O trauma da vítima ainda era enorme: “Quando a vítima, uma mulher, entrou na sala de audiências, desatou a bater no arguido com uma cadeira.” E nota que “a maior parte dos violadores são pessoas próximas da vítima e insuspeita­s”.

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Em 2011, Henrique Sotero, conhecido como o “violador de Telheiras”, foi considerad­o culpado de 71 crimes de violação cometidos entre 2008 e 2010. E condenado a 25 anos de prisão
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