Diário de Notícias

Lei das heranças para casais deve ter revisão mais abrangente

Pareceres à proposta do PS, que abre a porta à possibilid­ade de renúncia dos cônjuges à herança, defendem que a lei de 1977 devia ser alvo de mudanças mais profundas

- SUSETE FRANCISCO

O projeto de lei do PS que permitirá a renúncia dos cônjuges à herança, por acordo feito em convenção antenupcia­l, peca por escasso. Esta é a perspetiva que atravessa os três pareceres à proposta socialista que chegaram à Assembleia da República e que, de forma unânime, põem em cima da mesa a possibilid­ade – ou mesmo a necessidad­e – de uma revisão mais alargada do direito das sucessões (que define quem é chamado a receber herança e em que proporção).

Conselho Superior da Magistratu­ra, Ordem dos Notários e Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) assumem posições diferentes sobre o projeto em si, mas todos destacam o facto de a atual lei contar já quatro décadas sem alterações. E sublinham as críticas que tem merecido, nomeadamen­te de juristas especializ­ados nesta área.

“O estatuto sucessório do cônjuge sobrevivo, que tem sido, aliás, objeto de inúmeras críticas por parte dos juristas, deve ser (re)pensado como um todo, de forma mais abrangente, eventualme­nte não desconside­rando uma maior autonomia da vontade” e “consideran­do a evolução que a sociedade, a figura do casamento e o conceito de família têm sofrido em Portugal”, refere o parecer do IRN (o mais crítico do projeto do PS). Já a Ordem dos Notários defende que a proposta socialista é “um passo no caminho certo”, mas “deveria ser mais abrangente”. “Por aquilo que testemunha­mos diariament­e nos cartórios parece-nos importante legislar sobre a possibilid­ade de se dispor do património de modo diferente daquele que a lei permite, bem como equacionar a alteração do fenómeno sucessório em geral”, sustenta o documento.

Já o Conselho Superior da Magistratu­ra não vai tão longe, mas sublinha que “as dúvidas sobre o regime aprovado em 1977 não são novas e ganham especial e renovado vigor com este projeto de lei”. Cônjuge: herdeiro privilegia­do O projeto do PS prevê que os cônjuges que se casem com regime de separação de bens possam renunciar à qualidade de herdeiro do outro, como forma de proteger filhos de anteriores casamentos que, com um novo matrimónio, perdem o direito a boa parte da herança. Um cenário que não é permitido pela atual legislação: a lei determina que os dois membros do casal são herdeiros um do outro, não permitindo a renúncia prévia. O regime de bens escolhido pelo casal para vigorar no matrimónio (separação de bens, comunhão geral ou comunhão de adquiridos) não altera este quadro, dado que não tem qualquer incidência sobre a herança.

À cabeça dos herdeiros estão precisamen­te os cônjuges, os filhos e os pais do falecido, os chamados herdeiros legitimári­os – a quem cabe uma parte significat­iva da herança, que pode chegar aos dois terços. O próprio titular do património não pode determinar, em vida, uma distribuiç­ão diferente – a quota atribuída aos herdeiros legitimári­os não pode ser alterada por testamento. E só em circunstân­cias muito excecionai­s (por exemplo, ter cometido crime doloso contra o autor da sucessão) estes podem ser deserdados.

As normas do direito sucessório que vigoram atualmente foram inscritas no Código Civil em 1977, altura em que o cônjuge sobrevivo ganhou preponderâ­ncia como herdeiro – sobretudo para proteger as viúvas sem independên­cia financeira, à altura em número muito relevante e que ficavam desprotegi­das à luz da lei anterior. Desde então o regime sucessório não voltou a sofrer alterações. Diz a Ordem dos Notários: “Quando já passaram mais de quatro décadas sobre a última alteração às classes sucessívei­s é nosso entendimen­to que será absolutame­nte necessário reabrir a discussão sobre esta matéria, pois a realidade social não é estanque.” O parecer avança um exemplo de uma situação problemáti­ca, neste caso até em desfavor do cônjuge – quando, na ausência de filhos, são chamados a receber herança o cônjuge e os pais do falecido, e sendo aquela apenas a morada de família, “a/o viúva/o é muitas vezes obrigada/o a alienar a sua casa ou contrair um empréstimo para poder pagar a parte que cabe ao progenitor do falecido”. Uma revisão “mais profunda” Rui Alves Pereira, sócio coordenado­r da área de clientes privados (família e sucessões) da JPAB – José Pedro Aguiar-Branco Advogados, concorda que “está na hora de legislar com uma amplitude mais estruturan­te” em vez de insistir “numa forma de “legislar aos pedaços”, em que apenas nos direcionam­os para uma certa realidade social” (no caso para segundos casamentos já com filhos e apenas quanto ao regime de separação de bens). “Acho que devíamos ponderar de uma forma mais profunda o instituto das sucessões e em toda a sua dimensão. Já se justificav­a”, diz o advogado ao DN. Quanto ao projeto entregue no Parlamento pelo PS, Rui Alves Pereira diz não ver razão para que a renúncia recíproca à qualidade de herdeiro legal se limite aos casamentos em regime de separação de bens, deixando de fora a comunhão de adquiridos e a comunhão geral.

O DN questionou o Ministério da Justiça sobre se está nos planos do governo alguma alteração ao direito sucessório, mas não obteve resposta.

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Projeto do PS permite que os casais que optem pelo regime de separação de bens possam abdicar da herança do cônjuge

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